Um projecto do São Luiz Teatro Municipal

comissariado por Alvaro García de Zúñiga, José Luis Ferreira & Teresa Albuquerque


Et in Arcadia ego 1.jpg

Et in Arcadia ego, 1637, Nicolas Poussin



Capítulos 67, 68 e 69 da II parte das Aventuras do Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha


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Temas: A formação da personalidade – A literatura


As obras dos encantadores de DQ – do livro de cavalarias ao livro pastoril – o pastor DQ – o rogo dos açoites – a “porca” aventura – DQ indefeso – o túmulo de Altisidora – os juízes infernais – o martírio de Sancho.


Convidados : Luís Miranda e Diogo Fernandes



“Arcadia is a mental landscape of emotional distress.” B. W. Ife


Caros Quixotes, queridos Leitores,


No capítulo 58 a partir do qual começamos a avançar sozinhos nestas aventuras, D. Quixote e Sancho, ao abandonarem o castelo, deparam-se com uma falsa arcádia inventada pelos duques. No idílico cenário fazem-se espezinhar por um rebanho de touros.


Agora, (II 67 e 68), durante o caminho de regresso forçado a casa e ao passar pelo mesmo campo, é D. Quixote que decide tornar-se pastor para ocupar o tempo durante o período em que prometeu não ser cavaleiro. Para isso começa por baptisar-se, tal como no início do livro ao decidir tornar-se cavaleiro, e a Sancho. Esta nova arcádia, no lugar da falsa arcádia, não deixará de ter um efeito cómico bem como a repetição do espezinhamento, desta vez por um bando de porcos. O contraste não podia ser mais agudo e é notável esta nova transição de Cervantes do registo do romance de cavalarias para o pastoral. A diferença desta vez, ao contrário do episódio de Marcela ou da falsa arcádia, é que agora D. Qui já não é cavaleiro e pode “empersonificar” um novo papel, o do pastor Quixotiz. Esta nova personalidade de D. Quixote dá também uma enorme liberdade a Cervantes para voltar exercitar a sua pena no género pastoril que tão bem conhecia e tanto apreciava e que tencionava retomar depois do Quixote com uma segunda parte da Galatea, novela pastoral que publicou em 1585.


Como refere B.W. Ife no seu artigo “Algumas utilizações da pastoral no Quixote” a referência à novela pastoril e às suas fontes clássicas, salpica o livro todo. Basta pensarmos no capítulo 2 do 1º Livro, no “Apenas el rubicunco Apolo” (1) com que se inicia a primeira saída de D. Quixote, ou na queima dos livros em que os escrutinadores elogiam e salvam da fogueira romances pastoris e poesia.


No próprio capítulo sexto, da queima dos livros, a sobrinha solta esta tirada premonitória : “Ay, señor! —dijo la sobrina—, bien los puede vuestra merced mandar quemar como a los demás, porque no sería mucho que, habiendo sanado mi señor tío de la enfermedad caballeresca, leyendo estos se le antojase de hacerse pastor y andarse por los bosques y prados cantando y tañendo, y, lo que sería peor, hacerse poeta, que según dicen es enfermedad incurable y pegadiza” – É muito curioso – ou talvez não - que 6 capítulos antes do fim do livro, mesmo antes de regressar à aldeia o Quixote se veja apanhado agora pelo delírio pastoril antecipado pela sobrinha. Esta simetria barroca (porque não exacta) das dobras e desdobras da arquitetura do livro demonstram, a meu ver, o desejo do autor de abarcar o todo do tudo que o inquieta e também a extrema solidez dos alicerces desta obra de raízes tentaculares.


De um ponto de vista conceptual pode imaginar-se facilmente que o mundo dos romances pastoris está tão afastado da "realidade" como o dos romances de cavalarias. Não havendo a esse nível nenhuma diferença fundamental entre eles. Ambos aliás têm afinidades antitéticas com essa “realidade”. No caso do género pastoril que Cervantes tem sempre o cuidado de associar às classes mais cultas, sofisticadas e ricas (como no caso de Marcela e Crisóstomo ou das burlas dos Duques), estamos a falar da transumância : a principal fonte de sustento da Espanha daqueles tempos. Algo que dizia respeito a todos mas com que alguns podiam brincar. E a “brincadeira” aqui é dupla pois a Espanha desta altura está num momento charneira da sua história. Numa transição marcada pelo conflito entre os pastores e o agricultores. A paz conseguida com a união dos Reis Católicos veio paradoxalmente provocar uma dificuldade económica acrescida : com o aumento da população as magras colheitas de um solo pouco produtivo tornam-se insuficientes obrigando o país a importar cereais para alimentação com os recursos provenientes da América. Simultaneamente a venda de lã produzida pelos famosos rebanhos que atravessavam a Ibéria começou a sofrer com a concorrência do algodão e da seda. Enquanto a prata americana fluiu na península o sistema foi-se aguentado, mas como conta B.W.Ife que transcrevo a partir de uma tradução minha (e que podem consultar no nosso site no link da página desta sessão):


“O desequilíbrio da economia castelhana tornou-se crítico uma vez que o impacto da prata americana se dissipou. A rápida subida dos preços e uma legislação restritiva tornou os têxteis espanhóis não competitivo nos mercados europeus. Tecelões estrangeiros continuaram a comprar lã crua, incorporá-la em pano superior e vendê-la de volta aos espanhóis com um lucro considerável. Enquanto as frotas do tesouro duraram, os espanhóis podiam pagar, mas com um custo de longo prazo. O metal americano saiu do país tão rápido quanto entrou, e a Espanha encontrou-se com um grande desequilíbrio da balança comércial. Luis Ortiz, um contabilista do governo, informou Filipe II, que pelas suas contas, a Espanha estava a importar dez vezes o valor de suas exportações, e que em muitos casos se tratava da exportação para o fabricantes estrangeiros de matérias-primas que eram re-importadas como produtos acabados.

Para o fim do século e durante a vida de ambos Cervantes e Dom Quixote, o comércio de lã espanhola declinou rapidamente, como resultado da revolução de preços e da mudança de gosto europeu dos lanifícios para o algodão e a seda. O poder da Mesta (nobreza proprietária de rebanhos) também começou a cair rapidamente. No seu auge na década de 1520, havia rebanhos de cerca de 3,5 milhões de ovinos em toda a península. Entre 1552 e 1564 esse número desceu 20%. No início do século XVII estava abaixo dos 2 milhões.

Quando Don Quixote olha para a planície para as duas grandes nuvens de poeira, ele está a olhar para um símbolo do declínio da qual ele próprio é uma parte. O que ele está a ver é o empobrecimento progressivo da pequena nobreza fundiária menor da qual ele faz parte, a passagem de um período em que os valores da nobreza, outrora militar, os ideais da cavalaria que ele representa e tenta defender, já não se aplicam; e ele é testemunho de um paradoxo cruel tanto da história como da ficção, a progressão da fome, que nunca esteve muito longe ao longo do século XVI, uma fome que seus compatriotas sofrem cada vez mais, e que ele e Sancho sofrem constantemente ao longo do livro. Cervantes leva para casa este paradoxo-ovelhas, mas nada para comer. Numa passagem reveladora na Parte II, capítulo 59, imediatamente após o episódio da falsa Arcadia e a debandada de touros, Don Quixote e Sancho procuram uma pousada. Sancho pergunta ao anfitrião o que há para o jantar, e o anfitrião oferece o que eles quiserem. Num diálogo que relembra outro célebre com o proprietário da loja de queijos que não tem queijo, Sancho passa a sugerir uma gama completa de pratos : frangos, frangas, bacon e ovos - todos sem exceção acabam por estar fora do menu. Sancho tem de se contentar com um par de saltos (mãozinhas?) de vaca, que são, ainda assim, uma melhoria na sua dieta regular de bolotas e nêsperas; mas, talvez, de forma significativa, não há nenhuma menção a carne de carneiro ou cordeiro. "


Muitos dos temas que dominam esta segunda parte estão contidos nesse capítulo 58: a eterna fidelidade a Dulcineia (em contraponto com a sua antítese Altisidora) a cena pastoril e regressam nos capítulos desta sessão.


O Luís Miranda fará uma intervenção no início da sessão, e após a leitura Diogo Fernandes fará o breve comentário aos capítulos 67, 68 e 69.


Espero vós dia 23!


Abraço

Teresa



(1) " Yendo, pues, caminando nuestro flamante aventurero, iba hablando consigo mismo, y diciendo: ¿Quién duda sino que en los venideros tiempos, ciando salga a luz la verdadera historia de mis famosos hechos, que el sabio que los escribiere, no ponga, cuando llegue a contar esta mi primera salida tan de mañana, de esta manera? "Apenas había el rubicundo Apolo tendido por la faz de la ancha y espaciosa tierra las doradas hebras de sus hermosos cabellos, y apenas los pequeños y pintados pajarillos con sus arpadas lenguas habían saludado con dulce y meliflua armonía la venida de la rosada aurora que dejando la blanda cama del celoso marido, por las puertas y balcones del manchego horizonte a los mortales se mostraba, cuando el famoso caballero D. Quijote de la Mancha, dejando las ociosas plumas, subió sobre su famoso caballo Rocinante, y comenzó a caminar por el antiguo y conocido campo de Montiel." (Y era la verdad que por él caminaba) y añadió diciendo: "dichosa edad, y siglo dichoso aquel adonde saldrán a luz las famosas hazañas mías, dignas de entallarse en bronce, esculpirse en mármoles y esculpirse en mármoles y pintarse en tablas para memoria en lo futuro. ¡Oh tú, sabio encantador, quienquiera que seas, a quien ha de tocar el ser coronista de esta peregrina historia! Ruégote que no te olvides de mi buen Rocinante compañero eterno mío en todos mis caminos y carreras." Luego volvía diciendo, como si verdaderamente fuera enamorado: "¡Oh, princesa Dulcinea, señora de este cautivo corazón! Mucho agravio me habedes fecho en despedirme y reprocharme con el riguroso afincamiento de mandarme no parecer ante la vuestra fermosura. Plégaos, señora, de membraros de este vuestro sujeto corazón, que tantas cuitas por vuestro amor padece." Libro I, Cap. 2.





CAPÍTULO LXVII

CAPÍTULO LXVIII

CAPÍTULO LXIX


outros links :

Some uses of Pastoral in Don Quijote por B.W. Ife

Sobre o quadro de Nicolas Poussin


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