Um projecto do São Luiz Teatro Municipal

comissariado por Alvaro García de Zúñiga, José Luis Ferreira & Teresa Albuquerque


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Sessão 54 – Segunda, 12 de MAIO de 2014, 21:00 – Leitura dos capítulos 60 e 61 da Segunda Parte do Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."


A caminho de Bercelona – Roque Guinart – Cláudia Gerónima – a morte de Dom Vicente – a restituição do roubado – a equidade de Roque – o reparto do botim – a chegada a Barcelona.


TEMA : A lei e os fora da lei – Estado e anarquia - Barcelona


Convidado : Miguel Palma



Caros Quixotes, queridos Leitores,


Estas últimas sete sessões, que se iniciaram no dia 28 de Abril e se concluem no dia 21 de Julho, exigem de nós a tarefa quixotesca de desafiar a ausência do nosso Quixote-mor.


Ao longo de 52 sessões, fomos guiados pelo Alvaro dentro do próprio sistema criativo de Cervantes, das suas fontes, da sua época e da sua vida. O Alvaro dialogava com Cervantes de escritor para escritor, de irmão para irmão. Não é uma conversa anódina. Tinha profundamente a ver com aquilo que o Alvaro fazia, aquilo que o Alvaro era, mas sem dúvida nenhuma é algo que nos toca a todos, um algo que talvez seja indefinível, mas que nos é comum e essencial e o resultado de uma construção coletiva, embora imaterial.


Julgo que é esse o sentido dos livros e o trabalho do escritor. Tem também essa característica de, embora não fazendo parte do nosso código genético, fazer parte de nós, dessa percentagem de nós que não é herança genética mas resultado das nossas relações e interações com o mundo e com os outros e que por sua vez se torna parte daqueles com quem convivemos.


Em quê que isto nos leva ao Quixote? É a pergunta que fica em aberto a cada de sessão de leitura.


Comentário aos capítulos 60 e 61 da Segunda Parte do Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."


Na sua leitura do capítulo 60 Martin de Riquer afirma que este capítulo inicia uma nova e última fase do livro. Esta nova fase de algum modo já se anuncia no capítulo anterior, quando surge a referência à publicação do apócrifo de Avellaneda. Para desmentir esse “falso historiador” DQ dirige-se a toda a pressa para Barcelona, em vez de Saragoça, com tal pressa que de facto nem há aventuras até à chegada à Catalunha. E logo aquilo que acontece tem uma matiz muito menos ficcionada do que até então, passando a assumir um lado documental pronunciado e até cru e violento em certos aspectos. Assim, este capítulo inicia-se com os enforcados pendurados nas árvores e nele assistimos a duas mortes também violentas: a de D. Vicente e a de um dos correligionários de Roque Guinart, um bandido com o qual DQ e Sancho se vão cruzar. Será o desgosto de Cervantes com a publicação do apócrifo que provoca esta mudança de registo?


Para além disso, surge-nos pela primeira vez um Quixote vilipendiado por Sancho, passivo e apagado frente ao ladrão dos quatro caminhos Roque Guinart que inclusivamente toma o lugar do cavaleiro andante ao prestar auxílio à bela Cláudia Jerónima em apuros (que para cúmulo vem pedir ajuda a Roque e não ao nosso Qui) sob os fracos protestos do Quixote. A introdução desta nova personagem do “bom” ladrão, que pratica a “justiça distributiva” entre as suas hostes e procura ser apreciado pelas suas vítimas, vem completar o leque riquíssimo de figuras colecionadas por Cervantes. Esta personagem no entanto, distingue-se das anteriores por se tratar de uma personagem assumidamente real e contemporânea de Cervantes.


Roque Guinart, é uma personagem inspirada na vida do Bandido catalão Roca Guinarda. Roca Guinarda nasceu em 1582 (não se conhece a data da morte) e com 20 anos viu-se envolvido numa luta entre uma fação de grupos de nobres (ele apoiou o partido de Nyerros ) e o clero, que rapidamente se espalhou por toda a região. Roca Guinarda manteve durante anos a suas perseguições ilegais e ganhou rapidamente a reputação de ser o bandido mais ativo do nordeste da Espanha, actuando especialmente na região entre Zaragoza e Barcelona, e tornou-se notório pela sua generosidade Robin-hoodesca. Em 1610 uma força militar foi enviada para o capturar mas ele escapou. No ano seguinte, com 29 anos, aceitou um perdão e uma comissão no exército espanhol, tendo servido como capitão nas tropas de soldados que foram para Nápoles – uns 41 anos depois de Cervantes (1547) que também esteve estacionado nessa cidade, mais ou menos com a mesma idade (não se conhece ao certo o ano de nascimento de Cervantes), durante 5 anos, provavelmente entre os seus 23 e 28 anos, (entre 1670 e 1675) – antes de ser sequestrado e passar 5 anos em cativeiro. Curioso é que neste capítulo Cervantes atribua 34 anos a Roque – mais ou menos a idade com que Cervantes abandona o cativeiro, e também a idade que Roque de facto tinha aquando da publicação do II Livro, mas não à data dos acontecimentos relatados. Esta espécie de mistura entre diversos planos temporais vai-se acentuar, em particular no capítulo 62, durante a visita do D. Quixote a uma tipografia. Sabemos o quanto era cara a Cervantes a ideia que tudo podia ser visto segundo perspectivas diferentes mas aqui temos um plano diferente que emerge pois são os próprios factos factuais que começam a dizer coisas diferentes, colocando lado a lado verdades diferentes e questionamentos perturbadores. Tendo em conta que esta última luta do Quixote é contra a mentira, contra o falso historiador, contra Avellaneda, não creio que sejam involuntários estes sinais que eventualmente sob a máscara do erro, denunciam a revolta do autor roubado daquilo que lhe era mais querido: a verdade das suas personagens.


Uma nota merece reflexão : hoje referimo-nos à qualidade “Robin hoodesca” de Roque Guinart, mas de facto o lendário Robin hood, heroico fora da lei, cuja lenda remonta ao século XII, só começou a ser conhecido como o ladrão que rouba aos ricos para dar aos pobres no início do século XIX. O que nos permite dizer que Cervantes, ao fixar por escrito esta personagem antecipa por alguns séculos uma figura de estilo romântico bem conhecida de todos nós.


Não é portanto provável que a lenda de Robin Hood pudesse ter inspirado esta de Roque de Guinart, mas é possivelmente a Cervantes que se deve o perfil romântico que Robin dos Bosques adquiriu no século XIX com a ideia de “roubar aos ricos para dar aos pobres” subjacente à ideia de “justiça distributiva”, um tema aliás caro a Cervantes como vimos no discurso da idade de ouro, na primeira parte do livro.


Mais uma vez como vimos o tema da justiça é abordado, bem como a situação comum dos assaltos naquela época na Catalunha. A tónica é no entanto profundamente irónica, embora a ironia de Cervantes já nos seja familiar, ela é neste capítulo particularmente explicita e raia talvez o sarcástico.


É por exemplo impossível deixarmos de pensar – e ainda mais tendo Cervantes trabalhado como colector de impostos – na ironia do termo “justiça distributiva” e de nos perguntarmos até que ponto Cervantes se poderia identificar com este bom ladrão quando ia levantar os impostos devidos ao Estado. Trabalho que lhe valeu afinal passar uma temporada na prisão de Sevilha (em 1597).


Podemos encontrar ironia também na confusão de Roque quando diz – não sou nenhum cruel Osíris, que segundo Fernando Rico é uma confusão dificilmente intencionada por Busiris – lendário rei do Egípto que sacrificava os estrangeiros que desembarcavam no seu território, com Osíris, Deus dos Mortos , mas segundo Alison Weber essa confusão é intencional e faz parte da caracterização da personagem mostrando uma falta de segurança da sua cultura clássica de eventual efeito comíco.


Ironia ainda quando o narrador comenta “Tais e tão tristes eram as queixas de Cláudia que arrancaram lágrimas dos olhos de Roque, não habituados a vertê-las em nenhuma ocasião.”


Ou quando o Cide Hamete diz sobre a repartição do botim por Roque “com tanta legalidade e prudência, que não falhou nem um pouco nem defraudou nada da justiça distributiva.” – seguido do comentário de Sancho que “será tão boa a justiça que até serve aos ladrões” – para logo de seguida vermos Roque a rachar a cabeça de um correligionário que proferiu um protesto.


De referir ainda a personagem de Cláudia Jerónima, mais uma figura feminina de armas, literalmente – como a Marcela que surge depois do discurso da idade de ouro – e que não hesita em agarrar o seu destino com as próprias mãos (ao contrário das convenções da época) mesmo se se engana...


O capítulo 61, muito curto, descreve a chegada a Barcelona de D. Quixote e Sancho, protegidos pelo salvo-conduto que lhes entregou Roque Guinart. Destaca-se neste capítulo a visão do mar – podemos imaginar que a maioria dos primeiros leitores do Quixote teriam poucas ou nenhuma oportunidade na vida que chegar a ver o mar ¬– esta descrição de Cervantes devia por isso ser ouvida com enorme curiosidade e emoção. Marca também uma pausa de poesia e serenidade neste turbulento final.


Entrámos assim na reta final desta nossa epopeia.


O nosso convidado de hoje, Miguel Palma, é um maravilhoso artista plástico, digno herdeiro de Cervantes-Quixote, amigo de longa data do nosso Alvaro-Manuel e autor do terceiro volume do D.Quixote criado para o nosso ciclo no S. Luiz Teatro Municipal.


Para brindarmos ao Alvaro e ao Miguel vamos ter caipirinhas no bar do S. Luiz.


Até Segunda!


TA

7 & 13 de Maio 2014


***


links úteis :

CAPÍTULO LX

CAPÍTULO LXI

Don Quijote with Roque Guinart: The Case for an Ironic Reading por Alison Weber


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