Um projecto do São Luiz Teatro Municipal

comissariado por Alvaro García de Zúñiga, José Luis Ferreira & Teresa Albuquerque



Sessão 50 – Segunda, 10 de Março de 2014, 21:00 – Leitura dos capítulos 50 e 51 da Segunda Parte do Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."


Sancho by John Gilbert.jpg


Comentario dos capítulos 50 e 51 da Segunda Parte do Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."


Nestes capítulos encontramos uma série de episódios curtos mas muito precisos dentro dos quais prima aquilo que poderíamos catalogar principalmente como fazendo parte da literatura epistolar. Já as acções das idas e vindas nocturnas da duquesa e das donas preanunciam que o assunto social e de classes – que marca presença ao longo de todo o episódio da governação – vai continuar a ser o tema dominante, e assim será uma vez fora do palácio ducal: No episódio aldeão, Teresa e Sanchica serão as protagonistas de todo um jogo de classes que vai percorrer todo o espectro social.


A aventura na aldeia envolve a duquesa, presente através do seu pajem, que por sua vez é quem dá legitimidade a toda a situação. E no desenrolar da acção, aqueles que não estão presentes serão tão preponderantes como o são aqueles que sim participam nela, como Teresa, Sanchica, o cura e Sansão Carrasco.


Bom embaixador e mensageiro, o pajem – que nos já conhecemos por ter sido ele a dar corpo a Dulcineia, e estar no início de outra burla em curso, a que leva a Sancho a ter que dar-se três mil açoites para desencantar a senhora do Toboso – já desde a sua aparição na aldeia se desfaz em tratamentos cavaleirescos e cortesãos, chamando de “donzela” a Sanchica e saudando com grande reverência a sua “Senhora Dona Teresa” dando-lhe trato de “vossa mercê”.


Este traz duas cartas que ele mesmo lerá a Teresa, cada uma acompanhada de ricos presentes. A primeira, da qual já tivemos notícia no capítulo 37, é de Sancho e junto a ela vem o vestido de finíssimo pano verde que ele tinha usado e desgarrado no capítulo 34 durante o episódio da caça de montaria. Da segunda, enviada pela duquesa, e que é acompanhada com um “maço” de coral como presente, teremos noticia ao mesmo tempo que Teresa. Nela, a duquesa, utiliza o modelo da falsa familiaridade e condescendência aristocrática, que a coitada da Teresa tomará ao pé da letra, crendo serem sinceros sinais de amizade igualitária o trato de “amiga” e “querida minha”, o que por sua parte dá lugar às suas reflexões sobre o comportamento e o trato das fidalgas da aldeia.


De aldeã a governadora, só falta a Teresa vestir-se de dama para a sua vingança ser total e que surja efeito. Teresa é-nos apresentada com saia parda cortada por “vergonhoso lugar”, e a par de informar os “amigos” do bom sucesso com que foram coroadas as aventuras do seu escudeiro de marido baixo a tutela do cavaleiro Dom Quixote, o seu primeiro impulso é pedir a estes que a acudam para que se lhe compre um vestido em acordo com o seu novo estatuto. Em paralelo aos sonhos e delírios de mãe e filha que invertem em tudo a atitude sensata de Teresa no “apócrifo” capítulo 5 desta segunda parte, adivinha-se muito discretamente um fundo de desagrado no cura e no bacharel ao constatar a veracidade do sucesso obtido pelos dois aventureiros.


A elipse da carta de Sancho, a leitura da qual foi nos poupada por esta ter sido referida anteriormente, permite não relembrar ao leitor menos memorioso que o governador tinha determinado nela que a sua mulher andara de coche. Daí, provavelmente, a insistência de Teresa e Sanchica na obtenção e usufruto de um. Mas o assunto do coche remete para outras direcções que tocam às prerrogativas nobiliárias dos grupos sociais inferiores. A codificação da indumentária e demais privilégios de honorabilidade nobiliária, que se repetiu inumeráveis vezes entre 1530 e 1620, dá prova das transgressões constantes a que estava submetido todo o sistema de estatuto social. E isso toca em muito aquilo que refere aos coches e a sua regulamentação: Naqueles anos, o que mais estava em jogo era a ascensão a fidalguia de judaizantes, que, além de ter dado azo a alguns casos espectaculares, como o de dom Rodrigo Calderón satirizada por Góngora (1612) e muito provavelmente aludida por Lope no seu “Peribáñez”, tinha um efeito económico-social considerável além de estar na origem de uma mudança social que, uma vez começada, não teria volta atrás.


No começo do capítulo 51, Sancho é confrontado com um exercício de lógica. A história da ponte e da forca não difere em muito do paradoxo do barbeiro que pouco mais de três séculos depois será um dos pilares do pensamento de Bertrand Russell, e, a partir deste de toda a lógica e a filosofia da linguagem determinante na história das ideias e de tudo aquilo que de melhor tem dado o século XX.


Dada a enorme quantidade de trabalhos de toda índole que surgiram ao longo dos quatro séculos que vão desde a aparição das aventuras de Dom Quixote, é curiosa a ausência de referência e de estudos relativos a esta “pergunta” que, além desta ligação que se pode estabelecer com o pensamento de Russell, Wittgenstein, Quine e filósofos mais actuais como Hilary Putnam, etc., também parece relacionar-se com Calvino e ao seu “visconte dimezzato”, primeira parte da quixotesca trilogia “I nostri antenati” que aliás culmina com um paradoxal “cavaliere inesistente”, verdadeiro Quixote da existência, do ser, o melhor, do querer ser. Fica aqui o desafio aos cervantistas actuais e futuros atacar-se a este aspecto, que, apesar de fugaz, não deixa de ser um assunto maior e com muito para dizer ao respeito.


Sancho já não suporta mais o jejum ao qual o temível médico de Tirteafuera o submete, com isto começamos a apercebe-nos, através de indícios cada vez mais claros que se aproxima o fim da experiencia de governação, e por conseguinte, como é lógico imaginar, de todo o período palaciano de Dom Quixote. É a distancia entre ínsula e palácio ducal que põe em evidencia o recurso à literatura epistolar.


Entrelaçando episódios e acontecimentos ocorridos em lugares distintos teremos um último intercâmbio de correspondência entre Dom Quixote e Sancho na qual se aludirá ainda à que existiu entre a duquesa e Teresa Pança. Depois dos sábios conselhos com que o cavaleiro ainda brinda ao seu escudeiro, este, na sua carta, prova ter-se adiantado aos conselhos, tendo já começado a adoptar medidas administrativas que “até hoje se cumprem naquela vila e se chamam: As constituições do grande governador Sancho Pança.” O que é normal, se pensarmos que, neste tão pouco comentado episódio da ponte e da forca, Sancho chega ao cúmulo da sua clarividência. O enigma que lhe é apresentado é, de longe, muito mais subtil que os retortos pleitos que até então lhe tinham submetido, e, claro, aparenta-se muito às aporias tão apreciadas pelos gregos.


Mas se Sancho se mostra capaz de resumir e clarificar os elementos de um problema que lhe é apresentado de modo complexo, a sua solução em tanto que tal aparece-lhe ao relembrar um conselho que lhe tinha dado o seu amo: “eu neste caso não falei pela minha cabeça porque me veio à memória um preceito, entre muitos outros, que me deu o meu amo D. Quixote na noite anterior àquela em que vim ser governador desta ínsula: que foi que, quando a justiça estivesse em dúvida, me inclinasse e cedesse à misericórdia” (O que não é outra coisa senão uma versão do aforismo jurídico «In dubio, pro reo»). Talvez caiba então dizer por uma vez que o sucesso alançado por Sancho pode atribuir-se em boa medida ao próprio Dom Quixote. E este, por sua parte, provavelmente deslumbrado pelas notícias que lhe chegam de Barataria, confessa, falando de igual a igual, o pior trato que em comparação ele recebe, fazendo queixa até de um “gateamento” que em muito se parece ao manteamento que na saída anterior tinha recebido o escudeiro, já agora transformado em “amigo” como não se priva de declará-lo ao assinar a sua carta o cavaleiro da triste figura.


Sancho, calorosamente e com absoluta lealdade a seu amo e também aos duques proclama-se “criado” na missiva a Dom Quixote, sem por isso deixar de assiná-la como “governador”. Agora, as iniciativas que ele tem tomado diferem das anteriores, mais salomónicas mas também burlescas e que fazem parte do mundo ao contrario típico da utopia carnavalesca. Estas novas medidas de índole penal e administrativa são muito parecidas às que, na época se recomendavam aos corregedores para fazer respeitar as leis em vigor, evitar as fraudes, garantir a ordem pública, etc., mas sem esquecer a origem de Sancho que, com certa sanha misógina, castiga as tendeiras, e, especialmente gostaria de condenar à morte aos aguadores de vinho. Fechar o capítulo falando nas medidas implementadas por Sancho e o facto de estas ficarem legadas como constituições, envolve num halo mítico de lenda áurea o episódio todo da governação do ignorante-sábio.



AGZ

10 de Março de 2013




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