Um projecto do São Luiz Teatro Municipal

comissariado por Alvaro García de Zúñiga, José Luis Ferreira & Teresa Albuquerque



Sessão 52 – Segunda, 7 de Abril de 2014, 21:00 – Leitura dos capítulos 55, 56 e 57 da Segunda Parte do Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."


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Comentário aos capítulos 55, 56 e 57 da Segunda Parte do Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."


O desenrolar do reencontro do cavaleiro e do escudeiro no capítulo 55 sintetiza muitos dos rasgos mais representativos da escrita cervantina e da estrutura em “mosaico” de que esta se compõe. Por um lado a queda na cova de Sancho e do seu ruço, não deixa de ser uma paródia de uma outra paródia: a da descida de Dom Quixote na cova de Montesinos; e o modo um tanto alucinado com um certo ar de irrealidade com o qual é narrado, não deixa, aos olhos deste leitor, de parecer-se com o estilo em que virão a desenrolar-se muitos dos encontros dos Trabalhos de Persiles e Segismunda, a última novela do nosso autor, que apesar do seu tom assumidamente épico, não deixa de surpreender recorrendo a um exotismo assumido, ao ponto de denominá-la “história setentrional”.


As mudanças às que, como as vivências das últimas situações e aventuras dos últimos episódios, foi submetido Sancho, dão lugar ao uso de uma nova técnica que se pode considerar como caracterizadora da própria novela moderna. Cervantes não parece ter procurado tentar criar um aprofundamento psicológico determinado, nem tão pouco uma coerência orgânica como a que distingue os personagens e protagonistas da narrativa europeia a partir do século XVIII. Sancho Pança conjuga ainda muitas características das tradições literárias populares cómicas e se não resulta unidimensional é porque a sua rusticidade alterna com uma astúcia e ternura que, sem ser exatamente uma evolução psicológica gradual e coerente, oferece ao leitor uma variedade de matizes da sua personalidade verdadeiramente surpreendente.


Neste capítulo, Cervantes aperfeiçoa a técnica com a qual mantém o equilíbrio entre o “Sancho néscio” e o “Sancho sábio”. O tradutor já tinha julgado apócrifo o capítulo V desta segunda parte, porque nele «habla Sancho Panza con otro estilo del que se podía prometer de su corto ingenio y dice cosas tan sutiles, que no tiene por posible que él las supiese». Um tal comentário deixa entrever dúvidas quanto a verosimilitude de tão abrupta mudança; mas agora, a caracterização parcialmente diferente de Sancho é o resultado de meios narrativos e estilísticos. O solilóquio da cova, a mistura de refrões na resposta ao estudante, os cómicos neologismos na despedida aos duques dão forma a uma nova atitude vital e por outra parte harmonizam-se com os comentários irónicos do narrador.


No que diz respeito aos deslizes narrativos – a discordância entre as léguas recorridas, os dias a frente do governo, etc. – é interessante ressaltar que podem corresponder a um propósito de comicidade e não ao descuido, não sendo, de todos modos, fácil resolver a dúvida que se pode estabelecer em cada caso, já que aliás, na linguagem do narrador, Cervantes introduz certos coloquialismos ao mesmo tempo que põe na boca de Sancho rasgos artificiosos.


Seguir-se-ão o fim e a resolução da demanda da Dona Rodrigues com o até agora demorado torneio. Neste, tudo se cruza e intromete, e finalmente é o amor quem fere ao lacaio Tosilos que se declara vencido e disposto a casar-se com a ofendida donzela. DQ vence uma vez mais sem haver combatido, o duque, vê arruinada a sua bem premeditada burla e as damas ofendidas no começo protestam pela suplantação do marido. Uma vez mais, o que se nos tinha apresentado como engano acaba resolvido como um problema real, pondo as coisas no seu sítio, se bem que de um modo inesperado e torto. O amor, poder universal que tanto subjuga duques como pobres, tinha ferido o peito de Tosilos que decide tomar por mulher a filha da dona, mesmo com as suas manchas, para bem ou para mal e esta, após o seu protesto inicial termina por aceitar a proposta, preferindo ser mulher legítima de um lacaio a “amiga” de um cavaleiro, mesmo se o seu sedutor não o fosse exactamente.


As expectativas anunciavam um Dom Quixote outra vez moído, e será atribuída aos encantadores a mudança do fidalgo em Tosilos, apoiada por Sancho com os exemplos recentes do Cavaleiro dos Espelhos e de Dulcineia. O duque conforma-se, não sem deixar de castigar quem lhe arruinou a burla, mas também fica claro que a corte do duque já não dá mais de si, e este final rarefeito não faz talvez mais que sublinhar a vontade de Cervantes e Dom Quixote de abandona-lá definitivamente.


Chega assim o dia em que Dom Quixote retoma a vida errante própria ao seu oficio de cavaleiro andante. Após despedir-se dos duques, quando Sancho e seu amo já estão dispostos a partir, são detidos pelas queixas da desconsolada Altisidora. Comparações feitas por ela mesma com a sorte de Ariadna, a Olímpia do Orlando Furioso, abandonada pelo seu esposo Vireno, e Dido, e o modo como ela usa da palavra são decisivos para a compreensão daquilo que Altisidora representa. Efectivamente Cervantes nesta ocasião insiste na “discrição” com a qual a moça se mostra capaz de aventurar-se no terreno da burla verbal, com uma desenvoltura tal que espanta a própria duquesa. O duque, por sua parte, colabora com a pícara graciosa despedida da donzela, ressaltando no detalhe mais escabroso da mesma, a saber que seja devolvido um par de ligas que, segundo afirmou a jovem, leva indelicadamente o ingrato cavaleiro que a abandona. Assim, Altisidora dá uma última satisfação aos seus senhores ao reservar-lhes esta surpresa.


Já conhecemos o prazer que tinha Cervantes na invenção de caracteres de raparigas bonitas, discretas e muito dotadas retoricamente, mas no caso de Altisidora e a sua queixa através do romance em quartilhas, posto na moda por Lope de Vega, talvez não esteja desprovida de segundas intenções polémicas.


AGZ

7 de Abril de 2014




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