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A propósito do começo da terceira temporada de LER DOM QUIXOTE


A historia de D. Quixote – de quem se diz “que tinha o apelido de Quixada, ou Quesada, que nisto não estão de acordo os autores que escrevem sobre este assunto (“Mas – diz Cervantes – isto pouco importa à nossa história; basta que ao narrá-la não nos afastemos da verdade nem um ponto.”)” – começa “numa aldeia da Mancha, de cujo nome não quero lembrar”, onde, “não há muito tempo vivia um fidalgo dos de lança guardada no armeiro, adarga antiga, rocim fraco e galgo veloz”.

Num par de parágrafos ficamos a saber a condição deste cinquentão “de compleição rija, seco de carnes, enxuto de rosto, grande madrugador e amigo da caça” que, “nas horas em que não tinha nada que fazer — que eram as da maior parte do ano —, se punha a ler livros de cavalarias com tanto entusiasmo e prazer que esqueceu quase completamente a caça e até a administração dos seus bens; e chegou a tanto a sua curiosidade e despropósito nisto, que vendeu muitas fanegas de terra de semeadura para comprar livros de cavalarias para ler, e assim, levou para casa todos os que conseguiu.” Em resumo, “enfrascou-se tanto na sua leitura que a ler passava as noites inteiras em claro e os dias cada vez mais na escuridão; e assim, do pouco dormir e do muito ler, secou-se-lhe o cérebro, de maneira que acabou por perder o juízo” e “na verdade, já louco varrido, acabou por ter a ideia mais estranha que até hoje teve um louco no mundo, e foi que lhe pareceu proveitoso e necessário, tanto para aumentar a sua honra como para o serviço da sua república, tornar-se cavaleiro andante, e ir por todo o mundo com as suas armas e o seu cavalo em busca de aventuras”.

Assim foi que limpou as suas armas “e consertou-as o melhor que pôde”; a falta de uma, fez-se uma celada de cartão, e “foi depois ver o seu rocim, embora ele tivesse mais quartos do que um real e mais faltas que o cavalo de Gonela, que tantum pellis et ossa fuit. [...] Quatro dias se passaram com ele a imaginar que nome lhe daria; [e] por fim acabou por chamar-lhe Rocinante, nome, segundo lhe parecia, alto, sonoro e significativo do que fora quando foi rocim, antes do que era agora, que era antes e o primeiro de todos os rocins do mundo.”

Depois “quis pôr um a si mesmo, e neste pensamento permaneceu outros oito dias, e afinal veio a chamar-se D. Quixote, de onde, como fica dito, deduziram os autores desta tão verdadeira história que, sem dúvida, ele deveria chamar-se Quixada e não Quesada, como outros quiseram dizer.” Finalmente, “achou que tinha de ter uma senhora dos seus pensamentos [...] e como, segundo se supõe, numa terra perto da sua havia uma jovem lavradeira [...] pareceu-lhe bem dar a esta o título de senhora dos seus pensamentos. [...] Chamava-se Aldonça Lourenço [...] mas acabou por chamar-lhe Dulcineia do Toboso, porque era natural do Toboso; nome que lhe parecia harmonioso e raro e significativo, como todos os outros que a si próprio e às suas coisas pusera.”

“Assim, sem dizer a ninguém a sua intenção e sem ninguém o ver, numa alvorada, antes de ser dia, um dos calorosos de Julho, armou-se com todas as armas [e] montado em Rocinante dizia: — Quem duvida que nos futuros tempos, quando sair à luz a verdadeira história dos meus famosos feitos, o sábio que os escrever não ponha, quando contar esta minha primeira saída tão ao alvorecer, desta maneira: «Mal tinha o rubicundo Apolo estendido pela face da vasta e espaçosa terra as douradas fibras dos seus formosos cabelos, e mal os pequenos e coloridos passarinhos com as suas harmoniosas línguas tinham saudado com doce e melíflua harmonia a vinda da rósea aurora, que, deixando a macia cama do ciumento marido, pelas portas e varandas do manchego horizonte aos mortais se mostrava, quando o famoso cavaleiro D. Quixote de Ia Mancha, deixando as ociosas plumas, montou no seu famoso cavalo Rocinante e começou a caminhar pelo antigo e conhecido campo de Montiel.» E era verdade que por ai caminhava...” enquanto acrescentava: “— Ditosa idade e século ditoso aquele em que virão a lume as minhas famosas façanhas, dignas de serem lavradas em bronze, esculpir-se em mármore e pintar-se em tábuas para serem lembradas no futuro. Oh tu, sábio que fazes encantamentos, quenquer que sejas, a quem há-de competir ser cronista desta peregrina história! Rogo-te que não te esqueças do meu bom Rocinante, meu eterno companheiro em todos os meus caminhos e estradas.”

“Com estes, ia enfiando outros disparates, todos à maneira dos que os seus livros lhe tinham ensinado, imitando a sua linguagem em quanto podia. [...] Caminhava tão lentamente e o sol avançava tão depressa e com tanto ardor, que seria suficiente para lhe derreter os miolos, se alguns ele tivesse. [...] Há autores que dizem que a primeira aventura que lhe aconteceu foi a de Puerto Lápice; outros dizem que a dos moinhos de vento; mas o que eu pude averiguar neste caso, e o que achei escrito nos anais da Mancha, é que ele andou todo aquele dia e, ao anoitecer, o seu rocim e ele estavam cansados e mortos de fome...”

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Chegado a uma estalagem que ele acha ser castelo, DQ será armado cavaleiro pelo próprio estalajadeiro a quem, entre muitos outros jogos de palavras, chamara de Castelão: “Supôs o estalajadeiro que ter-lhe chamado castelão fora porque ele lhe parecera dos homens honrados de Castela, embora ele fosse andaluz, e dos da praia de Sanlúcar, não menos ladrão que Caco, nem menos meliante que um escolado nas manhas do seu oficio”...

Já armado cavaleiro – o que não foi feito pacificamente – DQ, na sua primeira aventura, “salva” momentaneamente a um moço da cólera do seu patrão, e depois será encontrado por um vizinho seu, que aprecebendo-se da sua locura conseguira com argúcia leva-lo de volta a sua casa, onde ao chegar diz: “- Detenham-se todos, pois venho ferido por culpa do meu cavalo. Levem-me para a cama e chame-se, se for possível, a sábia Urganda, para que observe e trate as minhas feridas.”

“Levaram-no depois para a cama e, procurando-lhe as feridas, não acharam nenhuma; e ele disse que só estava todo moído, por ter dado uma grande queda com Rocinante, o seu cavalo, ao combater com dez gigantes, os mais descomunais e atrevidos que se poderiam achar em grande parte da terra.” Enquanto DQ repousa, a sobrinha, a ama, o barbeiro e o cura vão queimar os seus livros. E Cervantes, evidentemente, aproveita a ocasião para fazer um verdadeiro pequeno tratado sobre a literatura.

“Dali a dois dias, levantou-se D. Quixote e a primeira coisa que fez foi ir ver os seus livros; e como não achava o aposento onde os deixara, andava de um lado para o outro a procurá-lo [...] depois D. Quixote ficou quinze dias em casa muito tranquilo, sem dar sinais de querer repetir os seus primeiros desatinos. [Mas pouco depois], D. Quixote solicitou a um lavrador seu vizinho, homem de bem — se é que este título pode ser dado a quem é pobre —, mas de pouco sal na moleirinha. tantas coisas lhe disse, tanto procurou convencê-lo e tais promessas lhe fez que o pobre aldeão decidiu ir com ele para lhe servir de escudeiro. Dizia-lhe, entre outras coisas, D. Quixote que ele acedesse a acompanhá-lo de boa vontade, porque nalguma ocasião lhe podia acontecer ser vencedor de uma aventura em que conquistasse, num abrir e fechar de olhos, alguma ínsula e o nomeasse o governador dela. Com estas promessas e outras semelhantes, Sancho Pança, que assim se chamava esse lavrador, deixou a mulher e os filhos e comprometeu-se a servir como escudeiro o seu vizinho” quem “sem Pança se despedir dos filhos e da mulher, nem D. Quixote da governanta e da sobrinha, numa noite saíram da aldeia sem que ninguém os visse; durante a qual caminharam tanto que, ao amanhecer, tinham a certeza de que ninguém os acharia, ainda que fossem à sua procura.”

Uma vez concluída a aventura dos moinhos de vento, encontrão no caminho uma carruagem e um grupo de frades entre os quais um leitor biscainho, com o qual, confusões mediante, o valoroso cavaleiro travará feroz combate : “Mas o mal de tudo isto é que neste momento e ocorrência, o autor desta história deixa interrompida esta batalha, desculpando-se de não ter achado mais nada escrito sobre estas façanhas de D. Quixote, além das que deixa contadas. Bem é verdade que o segundo o autor desta obra não quis acreditar que tão curiosa história estivesse entregue às leis do esquecimento, nem que tivessem sido tão pouco curiosos os engenhosos escritores da Mancha que não tivessem nos seus arquivos ou nos seus gabinetes alguns papéis que tratassem deste famoso cavaleiro; e assim, com esta suposição, não desesperou de achar o fim desta agradável história, o qual, se o céu lhe for favorável, achou do modo que se contará na segunda parte.”



É que, o primeiro livro – ou seja o que chamamos “a primeira parte do Dom Quixote” – está por sua vez dividido em quatro partes; e Cervantes aproveita a mudança de parte para inventar o “fotograma”: fecha-o no meio não só da acção, senão de um movimento – o das espadas no ar – para de esse modo retomar a historia na segunda parte, de um modo quase barroco, no capítulo seguinte. E o faz deste modo :

“Deixámos na primeira parte desta história o valoroso biscainho e o tão famoso D. Quixote com as espadas altas e desembainhadas, em atitude de descarregar dois furibundos golpes [...]”

Mas Cervantes também – ou tal vez sobre tudo – aproveita a ocasião para continuar o enredo autoral: “Causou-me isto grande pesar, porque o gosto de ter lido tão pouco se tornava em desgosto, ao pensar que no difícil caminho que se oferecia para achar o muito que, segundo me parecia, faltava de tão saborosa história. [...] E assim, eu não podia inclinar-me a acreditar que tão heróica história tivesse ficado incompleta e estropiada, e lançava a culpa à perversidade do tempo, que devora e consome todas as coisas, e que a ocultara ou consumira.”

Mas a complexidade não se fica por lá: “Por outro lado, parecia-me que, por entre os seus livros se terem achado uns tão modernos [...] também a sua história devia ser moderna, e que, embora não estivesse escrita, estaria na memória da gente da sua aldeia e das aldeias circunvizinhas. Esta suposição trazia-me confuso e desejoso de saber real e verdadeiramente toda a vida e prodígios do nosso [...] bravo D. Quixote de contínuos e memoráveis louvores, e a mim também não se devem negar, pelo trabalho e afinco que pus em completar esta agradável história; embora eu bem saiba que se o céu, o acaso e a fortuna não me ajudam, o mundo ficará diminuído e sem o passatempo e o gosto que bem quase durante duas horas poderá ter quem a ler com atenção.”

Mas esta desmesura com a qual Cervantes mesura o tempo tal vez não seja nada inocente, já que ele continua dizendo: “Passou-se, pois, o achá-la desta maneira:

Estando eu um dia no Alcaná de Toledo, chegou um rapaz para vender uns cartapácios e livros velhos [...] e como eu sou muito dado à leitura, ainda que seja dos papéis rasgados das ruas, levado por esta minha natural inclinação, agarrei num cartapácio dos que o rapaz queria vender, e vi que estava em caracteres que reconheci serem arábicos.

Uma coisa leva a outra, e assim, entre risos, Cervantes aproveita para continuar a historia : “Afinal, a sorte fez-me encontrar um, que, dizendo-lhe eu o meu desejo e pondo-lhe o livro nas mãos, o abriu no meio e, lendo algumas linhas, começou a rir-se. Perguntei-lhe de que se ria e respondeu-me que de uma coisa que aquele livro tinha escrita na margem como anotação. Pedi-lhe que ma dissesse e ele, sem deixar de rir-se, disse: — Como eu disse, está escrito aqui na margem o seguinte: «Esta Dulcineia do Toboso, tantas vezes mencionada nesta história, dizem que entre as mulheres de toda a Mancha teve a mão mais hábil para salgar porcos.»”

E a partir daqui, assim como Dom Quixote tem Sancho Pança por companheiro de aventuras, Cervantes vai ter o seu em Cide Hamete Benegeli: “Quando ouvi dizer «Dulcineia do Toboso», fiquei atónito e suspenso, porque logo me ocorreu que aqueles cartapácios continham a história de D. Quixote. Com esta suposição, apressei-o para que ele lesse o princípio e, fazendo isso, traduzindo de repente o arábico em castelhano, disse-me ele que dizia: História de D. Quixote de la Mancha escrita por Cide Hamete Benegeli, historiador arábico” e a historia pode continuar : “roguei-lhe que me traduzisse aqueles cartapácios, todos os que tratavam de D. Quixote, em língua castelhana, sem lhes tirar nem acrescentar nada [...] Estava no primeiro cartapácio pintada muito ao natural a batalha de D. Quixote com o biscainho, ambos na mesma posição que a história conta, levantadas as espadas”...



Assim, entre reflexões e comentários Cervantes vai retomar o fio da meada: “Nesta história sei que se achará tudo o que se possa desejar na que for mais aprazível; e se alguma coisa boa nela faltar, tenho para mim que foi por culpa do galgo seu autor, mais que por defeito do assunto. Enfim, a sua segunda parte começava desta maneira: Postas e levantadas ao alto as afiadas espadas dos dois valorosos e irados combatentes, não parecia senão que estavam a ameaçar o céu, a terra e o abismo: tal era a fúria e o aspecto que tinham.” E a partir de agora, deste combate no qual Dom Quixote perde meia orelha, ao perguntar-se ou perguntar-nos “quem será aquele que facilmente possa contar agora a raiva que entrou no coração do nosso manchego”, já não voltaremos a poder afirmar nem quem é que nos faz as perguntas nem a quem as dirige...

Também, a partir deste momento, somar-se-ão às aventuras e a historia principal varias outras, umas inseridas dentro ou paralelamente a estas, como se se tratasse de uma espécie de sub ou de inter texto, mas também outras, mais meta textuais, e que referem sempre a um nível que encontra-se acima da narração e que da conta de aspectos que parecem por vezes comentários e chegam a transformar-se num verdadeiro rompe-cabeças que nem sempre deixa claro quem é que está a contar-nos aquilo que é contado.

Passamos assim por muitíssimas historias e aventuras, como as dos rebanhos, da serra Morena, a do elmo de Mambrino e tantas outras; limos a novela do curioso impertinente, ouvimos historias como a do Cautivo e de Zoraida, e foram muitas as personagens que apareceram Vivaldo, Marcela, Dorotea, Cardenio, incluso reais, como o próprio Cervantes ou Ginés de Pasamonte, e algumas delas voltaram a aparecer como João Aldudo, o estalajadeiro, ou Andrés, aquele jovem que DQ tinha “salvo” quando a sua primeira saída, ainda sem a companhia de Sancho...



Ginés de Pasamonte aparece de modo fugaz na primeira parte. É um dos “libertados” quando teve lugar à aventura dos galeotes: “Cide Hamete Benengeli, autor arábico e manchego, conta nesta seriíssima, altissonante, minuciosa, doce e imaginada história que [... D. Quixote] viu que pelo caminho por onde eles seguiam vinham uns doze homens a pé, enfiados pelo pescoço como contas numa grande corrente de ferro, e todos algemados. [...] logo que Sancho Pança os viu, disse:

— Esta é uma corrente de galeotes, gente forçada a servir o rei, que vai para as galeras.

— Como gente forçada? — perguntou D. Quixote. — É possível que o rei force alguma pessoa? [...] Pois dessa maneira aqui vem a propósito a execução do meu oficio: pôr fim a violências e socorrer e acudir aos desgraçados. [...] Um dos guardas montados respondeu que eram galeotes, gente de Sua Majestade, que ia para as galeras, e não havia mais nada a dizer, nem ele tinha mais que saber.

— Apesar disso — replicou D. Quixote —, gostaria de saber de cada um deles em particular a causa da sua desgraça.”

E assim, entre outros casos, ficou a conhecer o de Ginés de Passamonte: “homem de muito bom parecer, de trinta anos de idade, que ao olhar metia um pouco um olho no outro. Vinha atado de modo diferente dos restantes, porque [...] só ele tinha mais delitos que todos os outros juntos, e era um tão audacioso e tão grande velhaco que, embora o levassem daquela maneira, não o consideravam muito seguro [... :] — Senhor cavaleiro, se tem alguma coisa para nos dar, dê-nos já e vá com Deus; que já irrita com tanto querer saber vidas alheias; e se quer saber a minha, saiba que sou Ginés de Pasamonte, cuja vida está escrita por estas mãos.

— Fala verdade — disse o comissário —, pois ele mesmo escreveu a sua história [...] e deixa na prisão o livro empenhado [...]

— E tenciono desempenhá-lo — disse Ginés —, ainda que tenha de pagar duzentos ducados.

— Ele é assim tão bom? — disse D. Quixote.

— É tão bom — respondeu Ginés —, que deixará ficar mal o Lazarillo de Tormes e todos os livros daquele género que se escreveram ou venham a ser escritos. [...]

— E como se intitula o livro? — perguntou D. Quixote.

— La vida de Ginés de Pasamonte — respondeu o mesmo.

— E está acabado? — perguntou D. Quixote.

— Como pode estar acabado — respondeu ele —, se ainda não acabou a minha vida? O que está escrito vai desde o meu nascimento até ao momento em que esta última vez me mandaram para as galeras.

— Portanto — já uma outra vez haveis estado nelas? — disse D. Quixote.

— Para servir a Deus e ao rei, já lá estive quatro anos [...] e não me custa muito voltar para lá, porque ali terei ocasião de acabar o meu livro, pois tenho ainda muitas coisas para dizer, e nas galeras de Espanha há mais sossego do que o que seria mester, embora não seja mester muito mais para o que tenho de escrever, pois sei-o de cor.

— Pareces-me esperto — disse D. Quixote.

— E desgraçado — respondeu Ginés —; porque as desditas perseguem sempre os inteligentes.” Relembremos também a cena de libertação: “D. Quixote arremeteu tão de repente que, sem lhe dar tempo [oo comissário] de pôr-se à defesa, atirou-o ao chão, ferido com uma lançada [...] Os restantes guardas ficaram atónitos e suspensos do acontecimento inesperado; mas, recuperando [...] arremeteram contra D. Quixote, que [...] sem dúvida ele teria passado um mau bocado, se os galeotes, ao ver a ocasião que se lhes oferecia para alcançar a liberdade, não a aproveitassem [...] Foi o alvoroço, de maneira que os guardas, quer para apanhar os galeotes, que se desprendiam, quer para atacar D. Quixote, não fizeram nada de proveitoso”.

D. Quixote disse-lhes: “senhores; em paga [do que de mim recebestes] é minha vontade, que, carregados com essa corrente que tirei dos vossos pescoços, vos ponhais já a caminho [...] do Toboso, e ali vos apresenteis diante da senhora Dulcineia [...] e lhe digais que o seu cavaleiro, o da Triste Figura, lhe envia saudações, e lhe conteis, ponto por ponto, todos os que teve esta aventura digna da maior fama até vos dar a desejada liberdade [...]

Por todos respondeu Ginés de Pasamonte e disse: [...] Pensar que ternos de carregar a nossa corrente e pormo-nos a caminho do Toboso, é pensar que agora é de noite (e ainda não são dez da manhã) e pedir-nos isso é como pedir peras ao olmo.

— Pois, maldito seja! — disse D. Quixote, já encolerizado —, dom filho da puta, dom Ginesilho de Parapilha, ou como vos chamais, que tendes de ir vós sozinho, de rabo entre as pernas, com a corrente inteira às costas.

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Pasamonte, que não era nada paciente, sabendo já que D. Quixote não tinha o juízo todo, pois cometera um disparate tão grande como o de querer dar--lhes a liberdade, ao ver-se tratado daquela maneira, [e] começaram a fazer chover tantas pedras sobre D. Quixote [...] com tanta força que o atiraram ao chão; mal caiu [recebeu varias] pancadas nas costas [...] Tiraram-lhe a veste curta que trazia [e] queriam tirar-lhe as meias [e] A Sancho roubaram-lhe o gabão, deixando-o em roupa baixa.” Se recordamos esta aventura e Ginés de Pasamonte em particular é porque este terá uma grande implicância nos capítulos que vamos ler hoje no começo da terceira temporada de LER DOM QUIXOTE mas também em relação com todo o desenrolar de todo o romance e da forma em que este foi escrito. Ginés de Pasamonte será responsabilizado pelo roubo do burro de Sancho. Mas não só. Incluso uma teoria – depois muito solidamente argumentada por Martín de Riquer – o propõe para autor da segunda parte apócrifa assinada por um tal Avellandea que ia aparecer em 1614, ou seja poucos meses antes da saída da segunda parte de Cervantes. Apócrifo este, que por sua vez, jogará um papel essencial naquilo que Cervantes já tinha começado a preparar-nos como surpresas nessa segunda parte, que seria editada dez anos depois da primeira.

Entretanto Dom Quixote tinha ganho fama. Tinha sido levado aos palcos já em 1606 em duas peças de Gullén de Castro, e também era comum vê-lo em desfiles de cabeçudos e outras procissões. Houveram entretanto varias edições do livro em Valência, Bruselas, Milão, duas ou tal vez três em Lisboa, e três em Madrid, alem de traduções em Inglês em 1612 e em Francês em 1614, que valeram muita fama a Cervantes incluso fora de Espanha.

Assim, às surpresas que Cervantes já nos tinha reservado – como a ideia que desde o começo da segunda parte saiba-se dentro do livro da existência do volume anterior e este seja conhecido e comentado –, sumar-se-ão outras com o aparecimento desta segunda parte apócrifa, que virá dar novas ideias ao autor para levar ainda mais longe a sua auctoritas, e o fará incorporar ao seu texto não só a existência de um Quixote falso que anda por aí a imitar o verdadeiro, mas também a existência dum livro falso!

É neste contexto que começamos hoje a terceira temporada de LER DOM QUIXOTE com a leitura dos capítulos 26 e 27 da segunda parte nos quais voltaremos a encontrar-nos com Ginés de Pasamonte e retomar as aventuras de Dom Quixote e Sancho.

Alvaro García de Zúñiga


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Um projecto do São Luiz Teatro Municipal

comissariado por Alvaro García de Zúñiga, José Luis Ferreira & Teresa Albuquerque


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