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A ideia de levar ao ecrã o rei Lear não é original. No site do IMDB recenseamos pelo menos 16 filmes com esse nome, e isto sem contar com adaptações  entre as quais podemos encontrar obras primas como Ran, de Akira Kurosawa.  
 
A ideia de levar ao ecrã o rei Lear não é original. No site do IMDB recenseamos pelo menos 16 filmes com esse nome, e isto sem contar com adaptações  entre as quais podemos encontrar obras primas como Ran, de Akira Kurosawa.  
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Peter Brook, Andrew Mc Cullough, Michael Elliott, Jean-Luc Goddard, Konitzev e muitos outros inspiraram-se nesta peça e com actores como Orson Welles, Lord Olivier, Patrick Magee, James Earl Jones…  
 
Peter Brook, Andrew Mc Cullough, Michael Elliott, Jean-Luc Goddard, Konitzev e muitos outros inspiraram-se nesta peça e com actores como Orson Welles, Lord Olivier, Patrick Magee, James Earl Jones…  
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Nada de novo portanto em fazer uma nova versão. A não ser que será a primeira a ser feita em Portugal – o que já não é pouco – e que esta versão faz uma aproximação entre as noções de velhice, cansaço e loucura a problemas actuais e que dizem respeito a muitos de entre nós: o desemprego e o sentimento transmitido pelos poderes públicos nacionais e europeus de que se pode prescindir facilmente daqueles que fazem a cultura dos nossos tempos.  
 
Nada de novo portanto em fazer uma nova versão. A não ser que será a primeira a ser feita em Portugal – o que já não é pouco – e que esta versão faz uma aproximação entre as noções de velhice, cansaço e loucura a problemas actuais e que dizem respeito a muitos de entre nós: o desemprego e o sentimento transmitido pelos poderes públicos nacionais e europeus de que se pode prescindir facilmente daqueles que fazem a cultura dos nossos tempos.  
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No Verão passado William veio passar uns dias de férias a Lisboa. Tínhamos aliás alguns assuntos a resolver: na próxima temporada o William interpretará a minha « [[Conferência de Imprensa]] » no TNSJ, e íamos conversar sobre isso com Ricardo Pais. Nessa mesma temporada, outra peça, « radiOthello » (uma versão radiofónica de Othello sobre cena) – que tanto gosto me daria poder vir a montar em Portugal – será produzida pelo Theater am Neumarkt de Zurique, e nessa peça também vamos trabalhar juntos (ver [[dossier radiOthello]]). Para além disso estava também agendada para Janeiro de 2007 uma leitura de um outro dos meus textos : « [[Leitura de um texto para o teatro]] » que William e Maria de Medeiros leram no Centro Cultural Calouste Gulbenkian de Paris. Portanto a ideia de passar alguns dias de férias juntos era uma boa oportunidade para por em dia todos esses projectos e de falar, inventar e fazer muitos outros...
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A ideia de fazer um filme sobre ''King Lear'', nasceu de conversas entre amigos sobre uma série de temas da actualidade : desde a situação dos intermitentes em França, e em Portugal à paralisia dos Institutos (e do resto) do nosso Ministério da Cultura, passando pela situação de dificuldade que sofre a criação actual em toda a Europa, onde se sente o pessimismo instalar-se com força. 
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Foi assim que nasceu a ideia de fazer um filme sobre King Lear.  Queríamos há muito fazer qualquer coisa juntos em cinema e a ideia de falar metaforicamente da actualidade a través dos personagens de ''King Lear'' estava aí, ao nosso alcance, como que à nossa espera.
  
Nesses dias falámos de tudo. Desde a situação dos intermitentes em França à paralisia dos Institutos (e do resto) do nosso Ministério da Cultura, passando pela situação de dificuldade que sofre a criação actual em toda a Europa, onde se sente o pessimismo instalar-se com força.
 
 
Foi assim que nasceu a ideia de fazer um filme sobre King Lear.  Queríamos há muito fazer qualquer coisa juntos em cinema e a ideia de falar metaforicamente da actualidade a través dos personagens de King Lear estava aí, ao nosso alcance, como que à nossa espera.
 
  
  
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No final das férias decidimos fazer um pequeno teaser, que nos permitisse testar entre nós um pouco do que poderia vir a ser o filme.  
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Shakespeare, tal como todos os autores do teatro isabelino, não se caracterizava pelo respeito absoluto pelo texto. Tomava bastantes liberdades, cortando aqui, saltando ali, trocando a ordem das cenas quando isso lhe parecia útil. É um espírito que me agrada muito e que gostaria de reproduzir.
Escolhemos duas cenas, as duas do primeiro acto: a primeira é um monólogo no qual Edmond – um dos personagens mais odiosos da obra de Shakespeare – reflecte sobre a sua condição de bastardo. Noutra o bobo da corte diz ao rei Lear que ao envelhecer sem ganhar juízo, é o rei que se torna o bobo.  
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Gravámos estas duas cenas em miniDV com a ideia de provarmos a nós próprios que o projecto é viável.
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Por isso a versão de ''King Lear'' que servirá ao guião do filme não será totalmente respeitosa nem do Folio de 1623, nem dos  dois Quartos que o antecedem (1608 e 1619).  
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Shakespeare, tal como todos os autores do teatro elizabetano, não se caracterizava pelo respeito absoluto pelo texto. Tomavam bastante liberdades, cortando aqui, saltando ali, trocando a ordem das cenas quando isso lhes parecia útil. É um espírito que me agrada muito e que gostaria de reproduzir.  
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Ran, em japonês, significa chaos. : penso que Kurosawa viu em Lear uma ruptura. No fim de Lear o que advirá é muito mais do que o fim de uma dinastia. É uma nova ordem : um mundo para o qual só conta a palavra escrita e  a palavra “dada” conduz à perdição. É o caos, o declínio dos costumes e dos valores da sociedade tal como entendida até então.
  
Por isso a versão de King Lear que servirá ao guião do filme não será totalmente respeitosa nem do Folio de 1623, nem dos  dois Quartos que o antecedem (1608 e 1619).
 
  
Na mesma linha, o próprio argumento não será mais do que um instrumento de trabalho : durante a rodagem e a montagem do filme encontraremos provavelmente soluções diferentes – espera-se melhores e mais eficazes – para expressar e contar as ideias que propomos.  
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Não será certamente por acaso que Alvaro Cunhal, recluso e isolado escolheu este texto para traduzir. Se ''King Lear'' pode ser visto como a antecipação de uma nova ordem essa expectativa embora esperançosa é também carregada de incertezas e precedida de um período de caos e desolação. Talvez semelhante ao vivido por Cunhal na penitenciária de Caxias, como sublinha o editor Luís de Sousa Rebelo : “A sintonia entre o tema e as vivências do tradutor é perfeita e revela-se nas páginas da versão portuguesa”.
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Hoje também temos a impressão de viver outro ''fim de época''. Os nossos valores e costumes parecem em vias de extinção e, na sobrecarga de (des)informação e na opacidade da transparência em que vivemos, o discurso democrático esvazia-se de conteúdo transformando-se num monstro. Tal como Lear e Glocester fizeram, criámos e alimentámos monstros prontos a nos destruir, a nós e aos nossos valores.
  
  
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Ran, em japonês, significa chaos. : penso que Kurosawa viu em Lear uma ruptura. No fim de Lear o que advirá é muito mais do que o fim de uma dinastia. É uma nova ordem : um mundo para o qual só conta a palavra escrita e  a palavra “dada” conduz à perdição. É o caos, o declínio dos costumes e dos valores da sociedade tal como entendida até então.
 
  
Hoje também temos a impressão de viver outro fim de época. Os nossos valores e costumes parecem em vias de extinção e, na sobrecarga de (des)informação e na opacidade da transparência em que vivemos, o discurso democrático esvazia-se de conteúdo transformando-se num monstro. Como Lear e Gloucester criámos e alimentámos monstros prontos a nos destruir, a nós e aos nossos valores.
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Sobre a forma : este é um filme que se passa todo dentro da cabeça de um homem. Haverá portanto uma profusão de vozes justapostas a flash backs e a imagens de actualidade e de arquivo, embora, na “realidade”, esse homem nunca saia de sua casa. A utilização da voz-off e a banda sonora serão construídos numa lógica radiofónica. Os ambientes são urbanos e contemporâneos e é o som que nos remete para a peça de Shakespeare.
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A escrita do argumento consistirá na adaptação do texto a uma escrita cinematográfica e no desenvolvimento das situações que permitam criar paralelismos com a tragédia isabelina.
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Revisão das 16h56min de 27 de Junho de 2007


K-Lear


Nota de Intenções


A ideia de levar ao ecrã o rei Lear não é original. No site do IMDB recenseamos pelo menos 16 filmes com esse nome, e isto sem contar com adaptações entre as quais podemos encontrar obras primas como Ran, de Akira Kurosawa.


Peter Brook, Andrew Mc Cullough, Michael Elliott, Jean-Luc Goddard, Konitzev e muitos outros inspiraram-se nesta peça e com actores como Orson Welles, Lord Olivier, Patrick Magee, James Earl Jones…


Nada de novo portanto em fazer uma nova versão. A não ser que será a primeira a ser feita em Portugal – o que já não é pouco – e que esta versão faz uma aproximação entre as noções de velhice, cansaço e loucura a problemas actuais e que dizem respeito a muitos de entre nós: o desemprego e o sentimento transmitido pelos poderes públicos nacionais e europeus de que se pode prescindir facilmente daqueles que fazem a cultura dos nossos tempos.


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A ideia de fazer um filme sobre King Lear, nasceu de conversas entre amigos sobre uma série de temas da actualidade : desde a situação dos intermitentes em França, e em Portugal à paralisia dos Institutos (e do resto) do nosso Ministério da Cultura, passando pela situação de dificuldade que sofre a criação actual em toda a Europa, onde se sente o pessimismo instalar-se com força. Foi assim que nasceu a ideia de fazer um filme sobre King Lear. Queríamos há muito fazer qualquer coisa juntos em cinema e a ideia de falar metaforicamente da actualidade a través dos personagens de King Lear estava aí, ao nosso alcance, como que à nossa espera.


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Shakespeare, tal como todos os autores do teatro isabelino, não se caracterizava pelo respeito absoluto pelo texto. Tomava bastantes liberdades, cortando aqui, saltando ali, trocando a ordem das cenas quando isso lhe parecia útil. É um espírito que me agrada muito e que gostaria de reproduzir.


Por isso a versão de King Lear que servirá ao guião do filme não será totalmente respeitosa nem do Folio de 1623, nem dos dois Quartos que o antecedem (1608 e 1619).


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Ran, em japonês, significa chaos. : penso que Kurosawa viu em Lear uma ruptura. No fim de Lear o que advirá é muito mais do que o fim de uma dinastia. É uma nova ordem : um mundo para o qual só conta a palavra escrita e a palavra “dada” conduz à perdição. É o caos, o declínio dos costumes e dos valores da sociedade tal como entendida até então.


Não será certamente por acaso que Alvaro Cunhal, recluso e isolado escolheu este texto para traduzir. Se King Lear pode ser visto como a antecipação de uma nova ordem essa expectativa embora esperançosa é também carregada de incertezas e precedida de um período de caos e desolação. Talvez semelhante ao vivido por Cunhal na penitenciária de Caxias, como sublinha o editor Luís de Sousa Rebelo : “A sintonia entre o tema e as vivências do tradutor é perfeita e revela-se nas páginas da versão portuguesa”.


Hoje também temos a impressão de viver outro fim de época. Os nossos valores e costumes parecem em vias de extinção e, na sobrecarga de (des)informação e na opacidade da transparência em que vivemos, o discurso democrático esvazia-se de conteúdo transformando-se num monstro. Tal como Lear e Glocester fizeram, criámos e alimentámos monstros prontos a nos destruir, a nós e aos nossos valores.


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Sobre a forma : este é um filme que se passa todo dentro da cabeça de um homem. Haverá portanto uma profusão de vozes justapostas a flash backs e a imagens de actualidade e de arquivo, embora, na “realidade”, esse homem nunca saia de sua casa. A utilização da voz-off e a banda sonora serão construídos numa lógica radiofónica. Os ambientes são urbanos e contemporâneos e é o som que nos remete para a peça de Shakespeare.


A escrita do argumento consistirá na adaptação do texto a uma escrita cinematográfica e no desenvolvimento das situações que permitam criar paralelismos com a tragédia isabelina.

TAAGZ


K-Lear

blablalab