Imaginar Shakespeare por Alvaro García de Zúñiga

Jornada “Clássicos na Gulbenkian” 14 de Maio de 2005

com William Nadylam, Josephine Birch e Alínea B. Issilva



(ver fotos de “Clássicos na Gulbenkian – Imaginar Shakespeare”)


A escolha dos temas que podem surgir face ao teatro e à poesia de Shakespeare é certamente infinita. Há 400 anos que cada uma das suas obras é motivo de todo tipo de aproximação crítica e cénica e uma fonte inesgotável dos modos e maneiras de perceber e reflectir sobre o homem e a sociedade contemporâneos a todas essas épocas. Poucos há, certamente, que nos tenham deixado tal legado.


A aproximação que me propus para esta celebração que hoje fazemos tenta reproduzir de alguma maneira a inesgotável multiplicidade implícita nos diversos aspectos da sua obra.


Começa por um prólogo, o de ‘’Troilus and Cressida’’, que se apresenta como tal – “and hither am I come / A prologue“–, e desse modo vem apresentar a série de peças de temática clássica: ‘’Troilus and Cressida’’, ‘’Timon of Athens’’, ‘’Pericles, Prince of Tyre’’, ‘’Julius Caesar’’, ‘’Antony and Cleopatra’’, ‘’Titus Andronicus’’, ‘’Coriolanus’’, ‘’Cymbeline’’…


Shakespeare, segundo alguns dizem, não terá nunca visto o mar. E, como afirmam outros comentadores, nunca viu com os seus próprios olhos um campo de batalha. Também não parece conhecer muito bem a geografia – põe a Hungria à beira do mar; e Proteu vai de barco de Verona a Milão e ainda espera pelas marés ! Ulisses – segundo ele – cita Aristóteles, e Timon de Atenas refere-se a Séneca e Galeno. Sir William misturava as épocas : um relógio marca as horas em Julius Caesar, uma aia desata o corpete de Cleópatra, os canhões disparam alegremente nos tempos de João Sem Terra...


Shakespeare não viu o mar, nem a guerra, e não conhecia bem a geografia, a história ou a filosofia, mais pressente e traduz melhor do que ninguém o “grande mecanismo” da história, da luta pelo poder e das paixões individuais que estão por detrás do comportamento humano.


A IVª cena do IV acto de ‘’Richard III’’, põe a nu esses diversos planos ao sintetizar a história dos Plantagenets. “Plantagenet doth quit Plantagenet”, denuncia num aparte a rainha Margaret, numa frase que pode ser lida como a ponta do iceberg das peças históricas (‘’King John’’, ‘’Richard II’’, as duas partes de ‘’Henry IV’’, ‘’Henry V’’, as 3 partes de ‘’Henry VI’’, a própria ‘’Richard III’’ e ‘’Henry VIII’’). Nesta cena, duas rainhas, ao chorar seus maridos pais e filhos mortos – uma longa série de Edwards, Henrys e Richards – põem a nu a visão do próprio Shakespeare desse “grande mecanismo” e da sangrenta luta pelo poder: trata-se de uma maquinaria infernal e inexorável da qual ninguém pode escapar, numa leitura da história que por vezes parece confundir-se com a do Príncipe de Machiavelo.


As tragédias representam talvez o centro de gravidade da obra de Shakespeare. É nelas que melhor se exprimem as ideias do fim do renascimento. ‘’Othello’’, ‘’Hamlet’’, ‘’King Lear’’, ‘’Macbeth’’, ‘’Romeo and Juliet’’, ‘’Antony and Cleopatra’’, ‘’Coriolanus’’, ‘’Julius Caesar’’, ‘’Timon of Athens’’, ‘’Titus Andronicus’’ (e também ‘’The Merchant of Venice’’ a pesar de esta, ao que parece, fazer parte das comédias), formam parte da reinvenção permanente a que estava sujeito tudo aquilo que se prestasse a ser levado ao palco, tendo por fonte seja as ‘’Vidas’’ de Plutarco, seja uma peça recente de Kyd, um mito islandês, alguma historia de Cervantes, ou uma ideia de um colega.


A dimensão do autor como criador intelectual ainda não estava totalmente consolidada, e é possível que a força excepcional da obra de virtuosos como Shakespeare, Cervantes ou Quevedo, tenha sido, em parte, responsável pela modificação do estatuto do artista, que, à partir de então, deixará de ser um simples artesão.


É talvez essa a razão pela qual o “Hamlet-Maschine” de Heiner Müller já não pode ser simplesmente um “Hamlet” tout court. O estatuto de “autor” actualmente não o permitiria, e não entanto a maquinaria de Heiner Müller, recria e põe em evidencia os paralelos existentes entre o “grande mecanismo” da época elizabethana e o do século XX.

‘’Othello’’ é uma peça sobre a qual trabalho desde há já um certo tempo. O facto de Othello ser um estrangeiro, um Mouro em Veneza, permite uma (re)leitura muito pertinente no nosso tempo. A minha ideia de (re)criação de Othello sublinha-a, e passa por uma reflexão sobre o modo como é percebida hoje a convenção teatral : radiOthello, o projecto no qual trabalho, mostra aquilo que é suposto não ser visto: uma representação de uma peça radiofónica.


Na cena VIª do IVº acto de ‘’King Lear’’ o texto é diálogo e didascália simultaneamente. É uma cena escrita para um tipo de teatro preciso – a pantomima – e nada melhor para a pantomima que um cenário vazio. No Globe Theatre, bastava a ajuda de três o quatro palavras para o cenário mudar e ficar pronto para a nova acção. O diálogo de Gloucester e Edgar, por outro lado, é quase beckettiano ao fazer-nos rir da pior das desgraças e ilustra particularmente bem a frase que Gloucester tinha dito pouco antes (IV – I) : “As flies to wanton boys, are we to th’ gods, / They kill us for their sport”.


É nas tragédias onde reside talvez o lado mais perenemente contemporâneo de Shakespeare.


A escolha do soneto XXIII (”As an unperfect actor on the stage, / Who with his fear is put besides his part,”) é duplamente teatral. Os elos que ligam os sonetos às comédias de Shakespeare são muito fortes, como é o caso da temática da duplicidade sexual, o fingimento, a escolha, ou melhor, a impossibilidade de escolha entre o efebo e a dama, a fragilidade da fronteira entre a amizade e o amor. Esses temas com todas as variações que vão desde o mais sério até ao bufo, da ambiguidade e o idílio mais ponderado até o escárnio, o sarcasmo e o maior dos ridículos encontram-se presentes nas comédias e, de forma mais sublimada, nos Sonetos.


Por último, o Epílogo da ‘’Tempestade’’, último texto da sua última peça aparece como súmula e adeus. Todos os temas shakespeareanos estão presentes na ilha de Próspero, e eles desenvolvem-se no tempo de uma representação. A ‘’Tempestade’’ passa-se entre as duas e as seis da tarde, que era o tempo no qual decorriam as representações no Globe. Uma vez chegada a sexta hora, o feitiço desfaz-se, o pano cai, e podemos voltar às nossas vidas, talvez um bocadinho mais ricos.


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