A propósito de Dom Quixote e a Gastronomia


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“Una olla de algo más vaca que carnero, salpicón las más noches, duelos y quebrantos los sábados, lentejas los viernes, algún palomino de añadidura los domingos, consumían las tres partes de su hacienda”

Assim começa o Quixote... Mas não é só no Quixote que Cervantes fala e escreve sobre cozinha: também o faz em El Rufián dichoso, Los Baños de Argel, El Gallardo Español, La Gran Sultana, El Coloquio de los perros, El licenciado vidriera, o Entremés de la cueva de Salamanca, Las dos doncellas, Rinconete y Cortadillo e até no Viaje del Parnaso.


Já bem antes dele, desde a aparição do Libre del Coch de Ruperto de Nola editado em Barcelona em 1490 (ou seja antes da descoberta de América), são muitos os livros e receitários que existiam na península no tempo de Cervantes. Só para citar alguns o "Libro del arte de cozina en el qual se contiene el modo de guisar de comer en qualquier tiempo", de Diego Granado, de 1599, o "Libro del arte de cozina" de Hernández Maceras, Salamanca, 1607 a "Arte de cozina, Pastelería y Vizcochería y Conservería", de Francisco Martínez Montiño, de 1611 e tantos, tantíssimo outros… mas afinal, o que é que se comia em 1600?


Um reduzido grupo de privilegiados – a aristocracia e os clérigos – comia em exceso e dispunha de uma cozinha sofisticada feita de pratos muito elaborados, vinhos custosos e produtos de alta qualidade. Cervantes chega inclusivamente a mencionar o caviar : “Pusieron asimismo un manjar negro que dicen que se llama cavial y es hecho de huevos de pescados, gran despertador de la colambre.” (DQ II, 54), mas refere-o mantendo claramente uma certa distância (“dizem que”), fazendo-nos compreender deste modo que essas coisas não são dadas a todos...


A maioria das pessoas tinha uma alimentação muito sóbria, e pelo que podemos saber a partir do que está documentado, as classes populares comiam pouco e mal, vivendo muitos das sobras dos conventos e da caridade. No mundo dos pícaros, estes ficaram definidos por Covarrubias (autor do primeiro diccionário da língua) como “gallofos”, mas mais revelador como “sopistas”, que provém de sopa, claro, também chamados “brodistas” (“brodo” o modo de dizer caldo em italiano), nomes todos utilizados na literatura picaresca, aliás.


Comparada com outras partes de Europa, a gastronomia peninsular de começos do XVII, caracteriza-se sobre todo pela influência da cozinha árabe e o uso das especiarias. Produtos, formas de condimentar, doçaria têm muitas vezes origem na cozinha que os árabes trouxeram à península marcando definitivamente a gastronomia ibérica.


Cervantes, como já sabemos, faz referência à comida muitas vezes. No banquete das bodas de Camacho, descreve a preparação de um novilho recheado de, entre outras coisas, uma dúzia de leitãozinhos, e uma série de caçarolas onde se fazem palominos, lebres e carneiros. Sancho fica totalmente surpreendido frente a quantidade de carnes, galinhas, queijos, frutas, etc., que se preparam para o banquete. Não esqueçamos que há pouco (em II, 13) lemos que “Comió Sancho sin hacerse de rogar, y tragaba a escuras bocados de nudos de suelta” (ou seja bocados tão grandes como os tais “nós de solta” que são as travas com as quais se ata ao cavalo, como anota Francisco Rico na sua edição do Quixote), e diz ao escudeiro do cavaleiro dos espelhos “Vuestra merced sí que es escudero fiel y legal, moliente y corriente, magnífico y grande, como lo muestra este banquete, que si no ha venido aquí por arte de encantamento, parécelo a lo menos, y no como yo, mezquino y malaventurado, que solo traigo en mis alforjas un poco de queso tan duro, que pueden descalabrar con ello a un gigante; a quien hacen compañía cuatro docenas de algarrobas y otras tantas de avellanas y nueces…”


Também no “Rufião ditoso” um Cervantes inspiradíssimo e de um virtuosismo infrequente – e muito provavelmente inspirado pelo apetite –, descreve uma abundantíssima merenda onde cita um grande número de pratos*. Entre outras referências podemos destacar os gazpachos, o salpicão, as empadas de coelho albar (que acho não quer dizer exactamente passos coelho em português), a conhecida “olla podrida”, o “manjar blanco” a língua de vaca, o turrón, etc.. Todas estas cenas, de abundância e variedade, contrastam com a fome que sofriam habitualmente as classes populares, descritas de modo brutal e com grande sarcasmo por Quevedo no “El Buscon”, e que Cervantes evidencia em muitos aspectos do comportamento e do carácter de Sancho.


E na época, na generalidade das pessoas “acomodadas” o pratos mais frequentes eram bastante mais humildes como as “gachas” (uma espécie de porridge), as lentilhas, o já citado gazpacho, os duelos y quebrantos, o bacalhau e até o gato assado... todos eles bastante mais frequentes que o “manjar blanco” e as outras delicias daquele tempo.


Já na Lozana Andaluza (novela dialogada publicada uns 30 anos depois da Celestina) há muitas citações culinárias, e nelas destaca a grande influência da cozinha árabe : “alcuzcuz con garbanzos, albondiguillas con culantro verde, hojuelas, pestiños, rosquillas de alfaxor, tostones de cañamones con ajonjolí, nuégados, sopaipas, hojaldres, hormigos, talvinas, zahínas, col con alcaravea, boronía, cazuela de berenjena moxíes, cuajarejos, pepitoria, limón ceutí, ginebradas, ginestada, orelletes, melindres, alcorza, etc.”


Esta influência aparece não só nos alimentos mais também na maneira de condimentá-los com aromas, especiarias, molhos... Coentros, gengibre, cravinho, cominhos, açafrão eram muito utilizados. A mistura de sabores doces e salgados e a incorporação de frutos nos molhos parecem indicar-nos que os homens das descobertas foram conquistados por sua vez pela cultura gastronómica dos conquistados... Mas onde a influencia árabe se faz mas evidente e na doçaria, ainda pressente na actualidade não só em Portugal, Senão também em Espanha, que é muito menos permeável, e não só em questões de gastronomia. Outras provas da influência árabe é o uso da mioleira, as vísceras pés e cabeças dos animais, com as quais guisava-se todo tipo de pratos. Também a utilização nos temperos do limão, da groselha, do sumo de uva verde, das laranjas e limas (até então não utilizadas no tempero), assim como a mistura de carnes guisadas com mermelos, peras, etc., e a utilização da amêndoa não só em doces, senão em guisados e até como bebida.


AGZ


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* [LAGARTIJA] —La Salmerona y la Pava,


la Mendoza y la Librija,


que es cada cual por sí brava,


gananciosa y buena hija,


te suplican que esta tarde,


allá cuando el sol no arde


y hiere en rayo cencillo,


en el famoso Alamillo


hagas de tu vista alarde.


[LUGO] —¿Hay regodeo?



[LAGARTIJA] —Hay merienda,


que las más famosas cenas


ante ella cogen la rienda:


cazuelas de berenjenas


serán penúltima ofrenda.


Hay el conejo empanado,


por mil partes traspasado


con saetas de tocino;


blanco el pan, aloque el vino,


y hay turrón alicantado.

Cada cual para esto roba


blancas vistosas y nuevas,

una y otra rica coba;


dales limones las Cuevas


y naranjas el Alcoba.


Darales en un instante


el pescador arrogante,


más que le hay del norte al sur,


el gordo y sabroso albur


y la anguila resbalante.

El sábalo vivo, vivo,


colear en la caldera,


o saltar en fuego esquivo,


verás en mejor manera


que te lo pinto y describo.


El pintado camarón,


con el partido limón


y bien molida pimienta,


verás cómo el gusto aumenta


y le saca de harón.


[LUGO] —¡Lagartija, bien lo pintas!


[LAGARTIJA] —Pues llevan otras mil cosas

de comer, varias, distintas,

que a voluntades golosas

as harán poner en quintas.


Cervantes El Rufián dichoso - Jornada I (92-135)




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Um projecto do São Luiz Teatro Municipal

comissariado por Alvaro García de Zúñiga, José Luis Ferreira & Teresa Albuquerque


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