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'''Comentario dos capítulos 50 e 51 da ''Segunda Parte do Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."'''''
 
'''Comentario dos capítulos 50 e 51 da ''Segunda Parte do Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."'''''
  
<div class=direita> 
 
''Yo he dado en Don Quijote pasatiempo''
 
 
''al pecho melancólico y mohíno''
 
  
''en cualquiera sazón, en todo tiempo… ''
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Nestes capítulos encontramos uma serie de episódios curtos mas muito precisos dentro dos quais prima aquilo que poderíamos catalogar principalmente como fazendo parte da literatura epistolar. Já as acções das idas e vindas nocturnas da duquesa e das donas preanunciam que o assunto social e de classes – que marca presença ao largo de todo o episodio da governação – vai continuar a ser o tema dominante, e assim será uma vez que nos encontremos fora do palácio ducal: No episodio aldeão, Teresa e Sanchica serão as protagonistas de todo um jogo de classes que vai percorrer todo o espectro social.
  
Cervantes
 
  
'''''Viaje del Parnaso'''''.
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A aventura na aldeia envolve a duquesa, pressente a traves do seu pajem, que por sua vez é quem dá legitimidade a toda a situação. E no desenrolar da acção, aqueles que não estão pressentes serão tão preponderantes como o são aqueles que sim participam nela, como Teresa, Sanchica, o cura e Sansão Carrasco.  
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Bom embaixador e mensageiro, o pajem – que nos já conhecemos por ter sido ele a dar corpo a Dulcineia, e estar no inicio de outra burla em curso, a que leva a Sancho a ter que dar-se três mil açoites para desencantar a senhora do Toboso – já desde a sua aparição na aldeia se desfaz em tratamentos cavaleirescos e cortesãos, chamando de  “donzela” a Sanchica e saudando com grande reverencia a sua “Senhora Dona Teresa” dando-lhe trato de “vossa mercê”.
  
  
No original, Cervantes começa o capítulo 48 da segunda parte do Quixote assinalando mais uma vez que a passagem entre dois episódios não coincide necessariamente com a divisão dos capítulos. Neste caso, ''"además"'', Cervantes, que começa justamente por este mesmo adverbio, faz alusão directa ao comentário que ele mesmo tinha feito nos versos 22 a 24 do quarto capítulo do seu Viaje del Parnaso. Se faltasse ainda alguma prova do monumental puzzle de materiais e (auto)referencias com o qual o autor compus este livro ímpar, fique aqui mais uma pequena amostra.  
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Este traz duas cartas que ele mesmo lerá a Teresa, cada uma acompanhada de ricos pressentes. A primeira, da qual já tivemos noticia no capítulo 37, é de Sancho e junto a ela vem o vestido de finíssimo pano verde que ele tinha usado e desgarrado capítulo 34 durante o episodio da caça de montaria.
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Da segunda, enviada pela duquesa, e que é acompanhada com um “maço” de coral como pressente, teremos noticia ao mesmo tempo que Teresa. Nela, a duquesa, utiliza o modelo da falsa familiaridade e condescendência aristocrática, que a coitada da Teresa tomará ao pé da letra, crendo serem sinceras sinais de amizade igualitária o trato de “amiga” e “querida minha”, o que por sua parte dá lugar as suas reflexões sobre o comportamento e o trato das fidalgas da aldeia.
  
  
O recurso a digressão, ''además'', mostra também a autonomia que Sancho tem ganhado nesta segunda parte da obra, até chegar a plena independência nestes capítulos referentes a ínsula Barataria. Sem ele, o seu lugar será neste capítulo ocupado pela Dona Rodrigues, e o capítulo todo será composto como se de um passo de entremez se tratasse. E não faltara nele nenhum dos ingredientes com os quais estes eram construídos, nem a lembrança clássica aos amores, nem a critica as donas, nem as figuras estranhas e tipificadas, e nem sequer o final a escuras e o enxerto de porrada.
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De aldeã a governadora, só falta a Teresa vestir de dama para a sua vingança ser total e que esta surja efeito. Teresa nos é apresentada com saia parda cortada por “vergonhoso lugar”, e a par de informar aos “amigos” do bom sucesso com que foram coroadas as aventuras do seu escudeiro de marido baixo a tutela do cavaleiro Dom Quixote, o seu primeiro impulso é pedir a estes que a acudam para que se lhe compre um vestido acorde ao seu novo estatuto. Em paralelo aos sonhos e delírios de mãe e filha que invertem em tudo a atitude sensata de Teresa no “apócrifo” capítulo 5 desta segunda parte, devinha-se muito discretamente um fundo de desagrado no cura e no bacharel ao constatar a veracidade do sucesso obtido pelos dois aventureiros.  
  
  
''Además'', ainda há mais: sobre esta teia, Cervantes, pinta ainda certos elementos essenciais e característicos de toda a obra. Assim, o cavaleiro que espera ver-se confrontado com Altisidora para encontrar-se frente a uma Dona que por sua vez confunde com uma aparição diabólica reflecte perfeitamente o contraste entre a imaginação e a realidade, e bem que possa parecer atenuado, não difere em muito com quem confunde rebanhos com exércitos ou molinhos com gigantes.
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A elipsis da carta de Sancho, a qual foi nos poupada a leitura por esta ter sido referida anteriormente, permite esquecer ao leitor menos memorioso que o governador tinha determinado nela que a sua mulher andara de coche. Daí, provavelmente, a insistência de Teresa e Sanchica a obtenção e usufruto de um. Mas o assunto do coche remete para outras direcções que tocam às prerrogativas nobiliárias dos grupos sociais inferiores. A regulamentação sobre indumentaria e demais privilégios de honorabilidade nobiliária, que se repetiu inumeráveis vezes entre 1530 e 1620, da prova das transgressões constantes a que estava submetido todo o sistema de estatuto social. E isso toca em muito aquilo que refere aos coches e a sua regulamentação: Naqueles anos, o que mais estava em jogo era a ascensão a fidalguia de judaizantes, que, alem de ter dado alguns casos espectaculares, como a de do Rodrigo Calderón satirizada por Góngora (1612) e muito provavelmente aludida por Lope no seu “''Peribáñez''”,  tinha um efeito económico-social considerável alem de estar na origem de uma mudança social que, uma vez começada, não teria volta atrás.
  
  
Cervantes não se priva, nem nos priva a nos, de incluir dentro desta historia outras historias e situações que ficam nela encaixadas, como é o caso de, dentro da historia da Dona e a da filha que ela vai-nos contar, incluir a do marido, ou a do aguazil, dando com isto, ''además'', um ar de sucesso real àquilo que é referido. Também não deixa de tocar no tema das relações entre classes sociais, assunto este que reaparece uma e outra vez de maneira mais ou menos explícita e especialmente neste período no palácio e, dentro deste, aquele que é o da estancia de Sancho na ínsula. Tudo um jogo de caixas chinesas onde as coisas e os temas e assuntos se encaixam os uns nos outros.
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No começo do capítulo 51, Sancho é confrontado com um exercício de lógica. A historia da ponte e da forca não difere em muito do paradoxo do barbeiro que pouco mais de três séculos depois será um dos pilares do pensamento de Bertrand Russell, e, a partir deste de toda a lógica e a filosofia da linguagem determinante na historia das ideias e de tudo aquilo que de melhor tem dado o século XX.  
  
  
Neste caso, Cervantes chega incluso a referir a cumplicidade e aliança entre a nobreza e o campesinos ricos, tema típico de boa parte do teatro da época, ao fazer-nos saber que o duque não intervenha na demanda de Dona Rodrigues devido a que o pai do sedutor da filha ''«le presta dineros y le sale por fiador de sus trampas...»''.
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Dada a enorme quantidade de trabalhos de toda índole que ao largo dos quatro séculos que vão desde a aparição das aventuras de Dom Quixote, é curiosa a ausência de referencia e estudo que há em relação a esta “pergunta” que, alem de esta ligação com o pensamento de Russell, Wittgenstein, Quine e filósofos mais actuais como Hilary Putnam, etc., também parece referir a Calvino e ao seu “''visconte dimezzato''”, primeira parte da quixotesca trilogia ''“I nostri antenati”'' que alias culmina com um paradoxal “''cavaliere inesistente''”, verdadeiro Quixote da existência, do ''ser'', o melhor, do ''querer ser''. Fica aqui o desafio aos cervantistas actuais e futuros a atacar-se a este aspecto, que, a pesar de fuga, não deixa de ser um assunto maior e com muito para dizer ao respeito.
  
  
''Además'', o que no começo da obra parecia afectar só a Sancho, a saber o contagio da loucura de Dom Quixote, parece ir afectando já agora em maior ou menor medida a todos aqueles que de um modo ou outro se relacionam com o nosso cavaleiro. Como já sabemos uns intentando fazer voltar o herói a realidade, outros com a escusa das burlas, e outros ainda, como Dona Rodrigues, quase que directamente: dir-se-ia que a loucura de Dom Quixote atrai e revela outras loucuras e com isto parece como se a realidade de mais em mais coincidisse com a loucura e paradoxalmente só a mistura de ambas permitisse encontrar uma solução positiva aos assuntos, aquilo que hoje chamamos sustentabilidade...
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Sancho já não suporta mais o jejum ao qual o temível médico de Tirteafuera o submete, com isto começamos a apercebe-nos a traves de indícios cada vez mais claros que aproxima-se o fim da experiencia de governação, e por conseguinte, como é lógico imaginar, tudo o período palaciano de Dom Quixote.  
  
  
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É a distancia entre ínsula e palácio ducal que põe em evidencia o recurso a literatura epistolar. Entrelaçando episódios e sucessos ocorridos em lugares distintos teremos um último intercambio de correspondência entre Dom Quixote e Sancho na qual se aludira ainda a que existiu entre a duquesa e Teresa Pança. Seguidamente aos sábios conselhos com que o cavaleiro ainda brinda ao seu escudeiro, este, na sua carta, prova ter-se adiantado aos conselhos, tendo já começado a adoptar medidas administrativas que ''“até hoje se cumprem naquela vila e se chamam: As constituições do grande governador Sancho Pança.”'' O que é normal, se pensar-mos que, neste episodio tão pouco comentado da ponte e da forca, Sancho chega ao cimo da sua clrividencia. O enigma que lhe é apresentado é, de longe, muito mais subtil que os retortos pleitos que até então tinham-lhe submetido, e, claro, aparenta-se muito às aporias tão apreciadas pelos gregos.
  
  
Chegamos assim a ronda nocturna de Sancho. Com ela, no capítulo 49 Cervantes volta a encontrar-se uma vez mais com o problema de como fazer para dar credibilidade ao facto de ter que atribuir ao iletrado escudeiro uma linguagem que dificilmente lhe seria natural. E outra vez encontra uma solução brilhante e original: ''“Todos los que conocían a Sancho Panza – nos diz Cervantes – se admiraban oyéndole hablar tan elegantemente y no sabían a qué atribuirlo, sino a que los oficios y cargos graves o adoban o entorpecen los entendimientos”''. E uma vez mais, o autor que já tinha passado por encontrar até ''“soluções apócrifas”'' e de atribuição duvidosa, consegue surpreender-nos com o seu leque de invenções, sempre geniais e únicas. O tema da ronda já aparecia em alguma novela picaresca e em alguns entremezes, nestas obras as rondas dão lugar a uma profusão de burlas que sofrem guardas e alguazis de justiça que neles se encontram. Dos três casos que Cervantes expõe na Barataria, só parece fazer referencia a esse mundo o cómico dialogo entre o governador e o jovem ''“tecelão de ferros de lanças”'' – expressão esta alias, que muito provavelmente tenha conotações eróticas sobre tudo que depois faz referencia a um provável futuro encontro nessa saída a “apanhar ar” a qual o moço se dizia destinado.  
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Mas se Sancho mostra-se capaz de resumir e clarificar os elementos de um problema que é-lhe apresentado de modo complexo, a sua solução em tanto que tal aparece-lhe ao relembrar um coselho que tinha-lhe dado o seu amo: “''eu neste caso não falei pela minha cabeça porque me veio à memória um preceito, entre muitos outros, que me deu o meu amo D. Quixote na noite anterior àquela em que vim ser governador desta ínsula: que foi que, quando a justiça estivesse em dúvida, me inclinasse e cedesse à misericórdia''” (O que não é outra coisa senão uma versão do aforismo jurídico «''In dubio, pro reo''»). Tal vez caiba então dizer por uma vez que o sucesso alancado por Sancho pode atribuir-se em boa medida ao próprio Dom Quixote.
  
  
Um tom muito diferente tem os outros dois o do jogador ganancioso e o terceiro, o mais desenvolvido deles todos e que não deixa de relembrar até na sua apresentação as historias e  aventuras novelescas. A linda jovem vestida de homem, tão referenciada em toda a literatura da novela de aventuras e dos comediógrafos da época – basta pensar no próprio Cervantes do Persiles e no Shakespeare da maioria das suas comedias – tal vez tente fazer o leitor predispor-se a algum enredo sentimental ao estilo do de Dorotea. Assim,. Incluso, parece entender-lo o próprio Sancho ''«¿...no os ha sucedido otro desmán alguno, ni celos, como vos al principio de vuestro cuento dijistes, no os sacaron de vuestra casa?»'' – mas não haverá tal e a aventura à qual podia esperar encontrar-se o leitor revela-se uma simples escapadela infantil : Barataria finalmente não é o mundo do revês nem a ilha da Utopia, nem tão pouco um lugar no qual se de nascimento a quaisquer aventura ou enredo literário.
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E este, por sua parte, provavelmente deslumbrado pelas noticias que lhe chegam de Barataria, confessa, falando de igual a igual, o pior trato que em comparação ele recebe, fazendo queixa até de um “''gateamento''” que em muito se parece ao ''manteamento'' que na saida anterior tinha recebido o escudeiro, já agora transformado em “''amigo''” como não se priva de declara-lo ao assinar a sua carta o cavaleiro.
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Sancho, calorosamente e com absoluta lealdade a seu amo e também aos duques se proclama “''criado''” na missiva a Dom Quixote, sem por isso deixar de firma-la como “''governador''”. Agora, as iniciativas que ele tem tomado diferem das anteriores, mais salomónicas mas também burlescas e que fazem parte do mundo ao contrario típico da utopia carnavalesca. Estas novas medidas de índole penal e administrativa são muito parecidas às que, na época recomendavam-se aos corregedores para fazer respeitar as leis em vigor, evitar os fraudes, garantir a ordem pública, etc., mas sem esquecer a origem de Sancho que, com certa sanha misógina, castiga as tendeiras, e, especialmente gostaria de condenar a morte aos ''aguadores'' de vinho.
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Fechar o capítulo falando nas medidas implementadas por Sancho e o facto de estas ficarem legadas como constituições, envolve num halo mítico de lenda áurea o episodio todo da governação do ignorante-sabio.
  
  
Uma última remarca, muito pessoal e sem nenhuma base de sustentação: e não será a ronda nocturna de Sancho que em certo modo tenha dado origem ao maravilhoso quadro de Rembrandt pintada por volta de 1640-42? A pesar do serio ao que a célebre pintura parece referir, o facto de nele se encontrar só uma jovem – que disse-se poder ser o retrato da primeira mulher do artista morta de tuberculose nesse mesmo ano de 42 – entre todos os homens finalmente bem poderia ser uma ligeira pista. E nos conhecemos muito bem e já temos falado muito das maravilhosas edições tempranas do Quixote em flandres...
 
  
  

Revisão das 17h02min de 10 de Março de 2014


Um projecto do São Luiz Teatro Municipal

comissariado por Alvaro García de Zúñiga, José Luis Ferreira & Teresa Albuquerque



Sessão 50 – Segunda, 10 de Março de 2014, 21:00 – Leitura dos capítulos 50 e 51 da Segunda Parte do Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."


Sancho by John Gilbert.jpg


Comentario dos capítulos 50 e 51 da Segunda Parte do Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."


Nestes capítulos encontramos uma serie de episódios curtos mas muito precisos dentro dos quais prima aquilo que poderíamos catalogar principalmente como fazendo parte da literatura epistolar. Já as acções das idas e vindas nocturnas da duquesa e das donas preanunciam que o assunto social e de classes – que marca presença ao largo de todo o episodio da governação – vai continuar a ser o tema dominante, e assim será uma vez que nos encontremos fora do palácio ducal: No episodio aldeão, Teresa e Sanchica serão as protagonistas de todo um jogo de classes que vai percorrer todo o espectro social.


A aventura na aldeia envolve a duquesa, pressente a traves do seu pajem, que por sua vez é quem dá legitimidade a toda a situação. E no desenrolar da acção, aqueles que não estão pressentes serão tão preponderantes como o são aqueles que sim participam nela, como Teresa, Sanchica, o cura e Sansão Carrasco.


Bom embaixador e mensageiro, o pajem – que nos já conhecemos por ter sido ele a dar corpo a Dulcineia, e estar no inicio de outra burla em curso, a que leva a Sancho a ter que dar-se três mil açoites para desencantar a senhora do Toboso – já desde a sua aparição na aldeia se desfaz em tratamentos cavaleirescos e cortesãos, chamando de “donzela” a Sanchica e saudando com grande reverencia a sua “Senhora Dona Teresa” dando-lhe trato de “vossa mercê”.


Este traz duas cartas que ele mesmo lerá a Teresa, cada uma acompanhada de ricos pressentes. A primeira, da qual já tivemos noticia no capítulo 37, é de Sancho e junto a ela vem o vestido de finíssimo pano verde que ele tinha usado e desgarrado capítulo 34 durante o episodio da caça de montaria. Da segunda, enviada pela duquesa, e que é acompanhada com um “maço” de coral como pressente, teremos noticia ao mesmo tempo que Teresa. Nela, a duquesa, utiliza o modelo da falsa familiaridade e condescendência aristocrática, que a coitada da Teresa tomará ao pé da letra, crendo serem sinceras sinais de amizade igualitária o trato de “amiga” e “querida minha”, o que por sua parte dá lugar as suas reflexões sobre o comportamento e o trato das fidalgas da aldeia.


De aldeã a governadora, só falta a Teresa vestir de dama para a sua vingança ser total e que esta surja efeito. Teresa nos é apresentada com saia parda cortada por “vergonhoso lugar”, e a par de informar aos “amigos” do bom sucesso com que foram coroadas as aventuras do seu escudeiro de marido baixo a tutela do cavaleiro Dom Quixote, o seu primeiro impulso é pedir a estes que a acudam para que se lhe compre um vestido acorde ao seu novo estatuto. Em paralelo aos sonhos e delírios de mãe e filha que invertem em tudo a atitude sensata de Teresa no “apócrifo” capítulo 5 desta segunda parte, devinha-se muito discretamente um fundo de desagrado no cura e no bacharel ao constatar a veracidade do sucesso obtido pelos dois aventureiros.


A elipsis da carta de Sancho, a qual foi nos poupada a leitura por esta ter sido referida anteriormente, permite esquecer ao leitor menos memorioso que o governador tinha determinado nela que a sua mulher andara de coche. Daí, provavelmente, a insistência de Teresa e Sanchica a obtenção e usufruto de um. Mas o assunto do coche remete para outras direcções que tocam às prerrogativas nobiliárias dos grupos sociais inferiores. A regulamentação sobre indumentaria e demais privilégios de honorabilidade nobiliária, que se repetiu inumeráveis vezes entre 1530 e 1620, da prova das transgressões constantes a que estava submetido todo o sistema de estatuto social. E isso toca em muito aquilo que refere aos coches e a sua regulamentação: Naqueles anos, o que mais estava em jogo era a ascensão a fidalguia de judaizantes, que, alem de ter dado alguns casos espectaculares, como a de do Rodrigo Calderón satirizada por Góngora (1612) e muito provavelmente aludida por Lope no seu “Peribáñez”, tinha um efeito económico-social considerável alem de estar na origem de uma mudança social que, uma vez começada, não teria volta atrás.


No começo do capítulo 51, Sancho é confrontado com um exercício de lógica. A historia da ponte e da forca não difere em muito do paradoxo do barbeiro que pouco mais de três séculos depois será um dos pilares do pensamento de Bertrand Russell, e, a partir deste de toda a lógica e a filosofia da linguagem determinante na historia das ideias e de tudo aquilo que de melhor tem dado o século XX.


Dada a enorme quantidade de trabalhos de toda índole que ao largo dos quatro séculos que vão desde a aparição das aventuras de Dom Quixote, é curiosa a ausência de referencia e estudo que há em relação a esta “pergunta” que, alem de esta ligação com o pensamento de Russell, Wittgenstein, Quine e filósofos mais actuais como Hilary Putnam, etc., também parece referir a Calvino e ao seu “visconte dimezzato”, primeira parte da quixotesca trilogia “I nostri antenati” que alias culmina com um paradoxal “cavaliere inesistente”, verdadeiro Quixote da existência, do ser, o melhor, do querer ser. Fica aqui o desafio aos cervantistas actuais e futuros a atacar-se a este aspecto, que, a pesar de fuga, não deixa de ser um assunto maior e com muito para dizer ao respeito.


Sancho já não suporta mais o jejum ao qual o temível médico de Tirteafuera o submete, com isto começamos a apercebe-nos a traves de indícios cada vez mais claros que aproxima-se o fim da experiencia de governação, e por conseguinte, como é lógico imaginar, tudo o período palaciano de Dom Quixote.


É a distancia entre ínsula e palácio ducal que põe em evidencia o recurso a literatura epistolar. Entrelaçando episódios e sucessos ocorridos em lugares distintos teremos um último intercambio de correspondência entre Dom Quixote e Sancho na qual se aludira ainda a que existiu entre a duquesa e Teresa Pança. Seguidamente aos sábios conselhos com que o cavaleiro ainda brinda ao seu escudeiro, este, na sua carta, prova ter-se adiantado aos conselhos, tendo já começado a adoptar medidas administrativas que “até hoje se cumprem naquela vila e se chamam: As constituições do grande governador Sancho Pança.” O que é normal, se pensar-mos que, neste episodio tão pouco comentado da ponte e da forca, Sancho chega ao cimo da sua clrividencia. O enigma que lhe é apresentado é, de longe, muito mais subtil que os retortos pleitos que até então tinham-lhe submetido, e, claro, aparenta-se muito às aporias tão apreciadas pelos gregos.


Mas se Sancho mostra-se capaz de resumir e clarificar os elementos de um problema que é-lhe apresentado de modo complexo, a sua solução em tanto que tal aparece-lhe ao relembrar um coselho que tinha-lhe dado o seu amo: “eu neste caso não falei pela minha cabeça porque me veio à memória um preceito, entre muitos outros, que me deu o meu amo D. Quixote na noite anterior àquela em que vim ser governador desta ínsula: que foi que, quando a justiça estivesse em dúvida, me inclinasse e cedesse à misericórdia” (O que não é outra coisa senão uma versão do aforismo jurídico «In dubio, pro reo»). Tal vez caiba então dizer por uma vez que o sucesso alancado por Sancho pode atribuir-se em boa medida ao próprio Dom Quixote.


E este, por sua parte, provavelmente deslumbrado pelas noticias que lhe chegam de Barataria, confessa, falando de igual a igual, o pior trato que em comparação ele recebe, fazendo queixa até de um “gateamento” que em muito se parece ao manteamento que na saida anterior tinha recebido o escudeiro, já agora transformado em “amigo” como não se priva de declara-lo ao assinar a sua carta o cavaleiro.


Sancho, calorosamente e com absoluta lealdade a seu amo e também aos duques se proclama “criado” na missiva a Dom Quixote, sem por isso deixar de firma-la como “governador”. Agora, as iniciativas que ele tem tomado diferem das anteriores, mais salomónicas mas também burlescas e que fazem parte do mundo ao contrario típico da utopia carnavalesca. Estas novas medidas de índole penal e administrativa são muito parecidas às que, na época recomendavam-se aos corregedores para fazer respeitar as leis em vigor, evitar os fraudes, garantir a ordem pública, etc., mas sem esquecer a origem de Sancho que, com certa sanha misógina, castiga as tendeiras, e, especialmente gostaria de condenar a morte aos aguadores de vinho.


Fechar o capítulo falando nas medidas implementadas por Sancho e o facto de estas ficarem legadas como constituições, envolve num halo mítico de lenda áurea o episodio todo da governação do ignorante-sabio.



AGZ

10 de Março de 2013




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