Um projecto do São Luiz Teatro Municipal

comissariado por Alvaro García de Zúñiga, José Luis Ferreira & Teresa Albuquerque



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Sessão 48 – Segunda, 10 de Fevereiro de 2014, 21:00 – Leitura dos capítulos 45, 46 e 47 da Segunda Parte do Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."


Desde o mesmo parágrafo em que conhecemos a Sancho – e já passaram desde então 90 capítulos, um prólogo e mais de dez anos – Dom Quixote prometeu dar-lhe o governo de uma ínsula. Muito se tem escrito, elaborado e interpretado sobre este episodio que sem dúvida é muito especial. Desde a consideração de Barataria como lugar utópico no qual triunfa a razão natural sobre a imposição, até a representação carnavalesca do mundo que contem. Mas Barataria não parece querer representar uma situação de mundo ao inverso, e desde o começo Cervantes parece querer dar isso a entender ao por essas primeiras reflexões sobre o abuso no uso de títulos, neste caso do dom – um bocado ao modo que hoje em dia se estende o senhor doutor em qualquer bar lisboeta, não é verdade senhor ingenheiro? – nas palavras de Sancho. Estas, alem de surgir em conformidade com ideias que deviam ser conformes a um dos tópicos da Espanha do 1600, também dão-nos de começo uma clara pista que o governo de Sancho será surpreendentemente sensato. Assim ao flamante governador são-lhe expostos três primeiros pleitos. O primeiro deles muito provavelmente seja tirado da tradição oral, se esse for o caso, Cervantes tira partido duplamente, já que, primeiro o eleva a categoria de “literário”, mas também de este modo deixa aberta a possibilidade de que Sancho conhecesse a historia por esta fazer parte do folklore hispano, e assim soubesse como resolve-lo de modo tão “salomónico”. Os que lhe seguem, por sua vez, provém da tradição escrita, o do báculo aparece em várias compilações de livros de Exempla - ao modo das Historias Ejemplares do proprio Cervantes – e o da mulher supostamente violada e referido num compendio de 1531 de fray Francisco de Osuna: Norte de los estados. Mas dar resolução a estes casos pressupõe uma sagacidade e inteligência muito acima da media que nos leva seja a evocar o louco clarividente erasmiano, seja imaginar que estas vinham também da tradição oral. Segundo os preceitistas da época os escritores deviam manter-se dentro do verosímil, e Cervantes não ignorava esta regra, mas como veremos mais para frente, todo este grupo de capítulos que contam a governança de Sancho na Barataria, assentam no principio do “burlador burlado” como até virá a confessar o mordomo do duque no capítulo 49. O leitor, deste modo, se não fica do lado do burlado, fica, pelo menos, do lado do desconcerto. Intercalam-se com a governança os acontecimentos no palácio entre DQ e Altisidora. DQ tenta acalmar os ardores da apaixonada donzela retribuindo o canto. Mas enquanto o faz a sua estancia é alvo de uma invasão inesperada, que dará lugar a uma “desigual batalla” entre o cavaleiro e um tropel de gatos. Um ataque vil, que só poderia vir da mão de encantadores ciumentos e perversos. Os arranhões serão tais que durante sete dias o nosso herói não poderá aparecer em público. O regresso a Barataria se faz a traves de um tema tradicional, o da comida escamoteada, que fora tratado em imensos relatos e entremeses, e que faz parte da tradição oral. Cervantes parece querer indicar-nos isto mesmo ao representar outra vez o tema, que já tinha sido tratado no episodio das bodas de Camacho, mas esta vez faze-lo num tom que é inequivocamente o da representação teatral. Cervantes encena assim a “conspiração infernal” com a qual o possuidor de riqueza – o duque –, ao que vem somar-se o detentor de saber – o médico –, conseguem submeter ao indigente e indefeso estômago de Panza. Ainda mais que nas cenas judicias estamos no terreno da burla. Seguir-se-ão os impertinentes pedidos do lavrador Miguel Turra e o próprio Cervantes vincula os episódios: “Mais um Tirteafora temos!”, mas Sancho terá dado já os primeiros sinais de desengano em relação as delicias e maravilhas do poder. A sua paciência não parece ser tão sólida quanto o mostrou ser o seu engenho, enfurece-se frente ao lavrador ameaçando romper-lhe a cabeça – como já tinha feito frente ao médico – e Cervantes sublinha subtilmente esta sua perca de controlo a traves da linguagem: Sancho abandona os cultismos que tinha utilizado no tribunal para refugiar-se alinhando refrães e assim deixando de seguir os conselhos do seu amo.


AGZ – 7 de Fevereiro de 2013.


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