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Edição actual desde as 12h02min de 22 de Junho de 2014


Um projecto do São Luiz Teatro Municipal

comissariado por Alvaro García de Zúñiga, José Luis Ferreira & Teresa Albuquerque



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Sessão 47 – Segunda, 27 de Janeiro de 2014, 21:00 – Leitura dos capítulos 43 e 44 da Segunda Parte do Engenhoso Cavaleiro Dom Quixote de la Mancha."


Dizíamos no comentário aos capítulos 41 e 42 que talvez o mais extraordinário dos conselhos que DQ dá a Sancho seja a simplicidade com que Cervantes os expõe, fazendo que estes se encontrem ao alcance imediato do leitor menos preparado ao mesmo tempo que, para um leitor mais atento, estes apareçam como uma série de comentários a meio termo podendo entender-se como alusão aos preceitos que se encontram nos livros de cavalarias da época ou como sendo a sua subversão absoluta, e que esta é outra das novidades e grandezas que Cervantes traz à prosa e à arte narrativa.


Nestes “segundos conselhos” do capítulo 43 DQ põe uma maior ênfase nos aspectos exteriores, na comida, no modo de falar, andar e vestir e até nas unhas, denunciando deste modo a importância que já naquele tempo se dava as aparências e ao facto que estas sejam percebidas e consideradas em muito como um elemento mais importante que os princípios no que respeita ao bom governar.


Sancho através de provérbios e ditos populares, expressa o seu sentido comum e a sua inteligência instintiva com a que demonstra o seu conhecimento da natureza humana que preanuncia o seu bom juízo na hora de vir a governar e tomar decisões. Cervantes parece deste modo sugerir a sua adesão à posição daqueles que consideram a lei natural superior à escrita, tema controverso no debate clássico sobre a questão de saber se o bom governador nasce ou aprende a sê-lo.


Mas os próprios comentários de Cervantes, por sua vez, são comentados pelo próprio, voltando a esse jogo de afirmações e contradições a que o genial escritor e tão afecto: Enquanto que Cide Hamete diz que os comentários de DQ são de “gran donaire” o comentador refere que estes têm o “don del Aire” ou seja que estão cheios de ar, vazios; e lá onde DQ se imagina um novo Catão ao estilo de Marco Porcio “o censor” pela sua habilidade em dar bons conselhos, Cervantes declara-se tacitamente um novo Catão pensando naquele que era apodado de “sereia latina” pela sua habilidade em criar poética ou metaforicamente um contexto incisivo e satírico de crítica social apenas através das palavras.


O começo do capítulo 44 é um dos mais extraordinários de toda a novela. É muito difícil, por não dizer impossível, decifrar no plano em que este se situa, assim como o comentador do mesmo. Fazendo referência aos problemas de tradução do capítulo, Cervantes comenta as crítica que foram feitas e a sua aceitação das mesmas em relação ao artifício das novelas intercaladas, e é notável o modo que encontra para desenvolver o tema, ao integrá-lo nos protestos que Benengeli faz contra o difícil que resulta atingir-se exclusivamente a narração dos acontecimentos relacionados com a história principal sem comentar aquilo que é periférico. É particularmente surpreendente que um fragmento de tanta importância e significação teórica seja exposto de um modo tão burlesco e pouco convencional e o faça aliás no começo de um capítulo que não parece ter outro objecto senão fazer a transição entre a estadia de Sancho no castelo e a viagem deste para tomar posse do governo da ínsula.


Notável também é o facto do pouco espaço que ocupa a partida de Sancho, a pesar da importância que tem na história. A partida, por sua vez, põe a descoberto a total solidão em que se encontra o cavaleiro sem a presença do seu escudeiro. A consequência directa desta solidão é que vão multiplicar-se à sua volta o que ele considerará como perigosos atentados e tentações que porão a duras provas a sua inquebrantável fidelidade à sua senhora Dulcineia. O tema será introduzido pela proposta da duquesa de que quatro das suas mais belas donzelas atendam ao serviço pessoal de DQ para remedar a falta do escudeiro, e vai chegar ao seu máximo desenvolvimento com a aparição de Altisidora.


Com o disparatado romance cantado pela suposta apaixonada Cervantes invoca uma situação de mundo ao contrário absoluto, pondo em cena uma declaração de amor feita por uma lindíssima jovem de quinze anos a um velho cinquentão roto, desdentado, louco e alucinado. O canto de Altisidora não faz senão amplificar aquela que tinha sido a segunda intervenção de Cide Hamete: homenagem directa ao Lazarillo de Tormes, trata-se de uma referência a uma pequena desgraça pessoal, apresentada como um delicado comentário ao tema da vergonhosa pobreza dos fidalgos sem recursos que faz eco ao assunto das aparências a que referia o próprio DQ nos seus conselhos sobre o bom governar.

AGZ 24 de Janeiro de 2014


***


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