“Palavras, William, apenas palavras”


Entrevista a ALVARO GARCÍA DE ZÚÑIGA.

Por JOÃO LUÍS PEREIRA.


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JOÃO LUÍS PEREIRA Sendo músico de formação (estudou violino e composição), como se foi processando a sua aproximação à escrita dramática?

ALVARO GARCÍA DE ZÚÑIGA “Aproximação” é uma palavra exacta para descrever esse processo, porque nunca houve propriamente um “desvio”. Escrevo desde a adolescência, a escrita e a composição musical foram surgindo ao mesmo tempo, de uma forma natural e complementar. Comecei por me interessar pelo teatro musical, talvez influenciado pela obra de compositores como Mauricio Kagel ou Roque de Pedro, que foi meu professor de composição. Foi uma formidável ferramenta de expressão, uma vez que me permitiu explorar a performatividade do gesto musical, mais do que a música propriamente dita. Daí até à escrita dramática foi um pequeno passo: comecei por escrever uma série de textos que não eram bem teatro, mas teatro que falava de música. Coisas que escrevi nos anos setenta, que nunca foram representadas.


Da composição à literatura, da poesia ao teatro, do cinema ao teatro radiofónico – podemos afirmar que, apesar deste muito cruzado e indisciplinado caos criativo, o seu centro de operações foi sempre o som, enquanto matéria dizível?

Na verdade, há duas coisas que aparecem sempre entrelaçadas nos meus trabalhos: o som e o sentido. A propósito de caos, a etimologia da palavra remete-nos para algo como “a emissão do primeiro sopro antes do grito”, o que é muito interessante. E revelador…


Como chegou Conferência de Imprensa ao TNSJ, onde vai ter a sua estreia absoluta no contexto do Portogofone?

Foi um projecto que apresentei a Ricardo Pais, e ele mostrou-se interessado. Mas tudo começou quando o William Nadylam me pediu que escrevesse um monólogo para ele interpretar. Conferência de Imprensa foi o resultado desse desejo. A peça foi escrita a pensar nele, factor decisivo, porque há muito tempo que queria trabalhar uma temática – o poder – que nunca tinha sido abordada centralmente no meu trabalho, assunto que também interessa ao William.


Tratando-se de um actor com uma infinita capacidade de modulação da palavra, era ele o instrumento ideal para conferir nuances a esta fala, na aparência tão mecânica?

Não sei se concordo com esse carácter mecânico de que fala. Talvez a leitura da peça conduza erroneamente a essa ideia de “mecanicidade”, mas em palco vai resultar de uma forma diferente. Isto porque ela comporta muitos silêncios, muitos momentos de escuta, reflexão e suspensão – não sabemos quanto tempo existe entre as perguntas, que nós nunca ouvimos, e as respostas. O desafio tem que ver precisamente com as pausas que podem existir entre as palavras e essa dimensão interpretativa vai ser decisiva. Na “partitura” de Conferência de Imprensa estão implícitas muitas fermatas, elementos de notação musical que significam que a variação do tempo – a duração e a suspensão de algumas frases – fica ao critério do intérprete. Mas nesse aspecto o William é enorme, é uma máquina de surpresas.


Em Conferência de Imprensa não temos propriamente personagens, pelo menos no sentido mais convencional do termo. Existem dois “eles”, o actor de cinema e o político…

Aliás, em todo o meu teatro não existem personagens, ele é feito por pessoas em palco que parecem ter consciência disso. Neste caso concreto, acho que também podemos imaginar um terceiro “ele”, um homem das finanças, um destes tipos que trabalham em Wall Street…


São todos faces da mesma moeda corrente do comércio mediático, dominado pela frase feita, pelo lugar-comum, pela vacuidade do pensamento?

Eles representam, nos dias que correm, as faces do poder. De certa maneira, o poder sobrevive hoje em função da economia: não há nada mais marxista que o sistema capitalista, que nos mostra que não estamos a viver a história, mas a história económica, que era aquilo que dizia Marx, curiosamente. Temos hoje uma classe política completamente desconectada de uma quantidade enorme de realidades, há cada vez um fosso maior entre o poder e os cidadãos. E tudo isto é alimentado pela indústria mediática, que produz um ruído de fundo permanente que domina tudo, que permite que qualquer tipo de mensagem passe.


A palavra, a linguagem, é, como sugeria Ionesco, “a arma verdadeira de toda a dominação”? E o teatro deve assumir-se como o espaço onde esse potencial destrutivo pode ser questionado?

Não sei se é a verdadeira, mas é sem dúvida uma das mais perigosas e eficazes. Uma das competências positivas do teatro, não será certamente a única, é poder questionar as coisas, é um dos espaços onde a sociedade se pode pôr em causa, onde a sociedade se pensa. Não de uma maneira paternalista, moralista, mas que permita às pessoas, através desse questionamento, abrir os olhos.


É um dos últimos redutos?

Eu diria antes que é o primeiro reduto.


Parece acreditar mais no poder do teatro do que no poder das palavras…

Talvez as palavras mintam mais do que o teatro. É curioso, mas o teatro parece não ter máscaras, porque a partir do fingimento pode chegar-se a uma essência, a uma verdade. A palavra em si contém o jogo retórico, que permite toda a fascinante dimensão interpretativa, mas para mim o teatro não se resume a um jogo retórico: o teatro, o melhor teatro, aquele que vai de Ésquilo a Beckett, passando por Shakespeare, é sobre a sociedade a pensar sobre si mesma.


Conferência de Imprensa abre de uma forma absolutamente epigramática – “Palavras, William, apenas palavras”. Este William remete-nos simultaneamente para Shakespeare (que é aqui uma presença recorrente, através de citações da sua obra) e para Nadylam, o actor que celebra esta espécie de ritual litúrgico sobre a palavra e os seus logros…

Nadylam é indiscutivelmente um dos maiores actores shakespearianos da actualidade, foi mesmo o mais extraordinário Hamlet que alguma vez vi, e Shakespeare é um dos autores que me está mais próximo, não porque eu seja um especialista, longe disso, mas porque marcou muito a minha relação com o teatro. Todos estes reenvios a Shakespeare começaram por ser uma brincadeira entre mim e o Nadylam, porque é um autor que tem estado muito presente entre nós: estamos a trabalhar num projecto sobre King Lear, vamos fazer juntos uma peça que se chama radiOthello (que se estreará logo a seguir a Conferência de Imprensa, no Theater am Neumarkt de Zurique) e existe ainda a ambição de montar um espectáculo a partir de uma tradução que o António M. Feijó fez de Macbeth. Mas as citações shakespearianas, para além de se constituírem em anedotário interno de Conferência de Imprensa, servem igualmente para mostrar até que ponto podemos continuar a rever-nos em alguns textos renascentistas.


Esta epígrafe estabelece uma espécie de correspondência directa entre o “palavras, palavras, palavras” dito por um Hamlet saturado de spleen e o ininterrupto e indiferente “blá blá blá” da torneira mediática?

Assim como o Dom Quixote poderia ser lido como a materialização do medo que Cervantes tinha da alienação do homem através do aparecimento da imprensa de Gutenberg, este “palavras, palavras, palavras” de Hamlet é talvez o sintoma desse mesmo receio de que através da massificação o discurso se esvazie de conteúdo. Vivemos numa época em que esse esvaziamento atingiu o seu ponto mais alto, através da imprensa, da televisão, da Internet. Existe hoje o medo de sermos engolidos pela técnica.


Afirmou numa entrevista que Beckett o tinha conduzido ao teatro. Diz que aprendeu com ele a “procurar um tempo de acção teatral que não pode exceder o tempo real do espaço cénico”, e que isto o tinha levado a eliminar as personagens dos seus textos, ideias omnipresentes em Conferência de Imprensa

Beckett foi uma grande referência na minha adolescência, no sentido de ter percebido que havia uma forma, um tema, ou um conjunto de temas que ele levou muito mais longe do qualquer dramaturgo antes dele. Foi a partir dele que comecei a construir o meu teatro. Conheço melhor Beckett do que Shakespeare, no sentido de ter lido e analisado muito a fundo os sentidos das suas palavras, as suas potencialidades. Acho muito interessantes os seus “dramatículos” finais, muito rarefeitos, construídos com fragmentos, farrapos de palavras. Fiquei muito impressionado quando li um pequeno texto de Novalis, onde ele descreve uma literatura construída precisamente a partir de farrapos e onde o sentido seria uma coisa quase residual. Tenho-o algures por aqui, vou procurar. Aqui está ele: “Relatos descosidos, incoerentes, todavia contendo associações, como os sonhos. Poemas perfeita e simplesmente harmoniosos, belos e feitos de perfeitas palavras, contudo sem coerência ou sentido algum, contendo no máximo duas ou três estrofes inteligíveis – que devem ser puros fragmentos das mais diversas coisas. A poesia, a verdadeira, pode ter, no melhor dos casos, um lato sentido alegórico e produzir, tal como a música [...], um efeito indirecto”. É absolutamente extraordinário que ele, no século XVIII, tenha chegado à ideia de uma literatura conceptual!


Pensando na sua obsessão pela plasticidade da língua, enquanto matéria sónica geradora de sentidos, e tendo mesmo em conta as suas incursões nos domínios do teatro radiofónico, ocorreu-me a frase “eu escrevo para as orelhas”, de Valère Novarina…

Sinceramente não me revejo no trabalho de Novarina, embora reconheça que ambos temos uma relação com o som que é determinante, esse tal “teatro de orelhas”. Valère é um dos expoentes máximos da literatura dramática pós-beckettiana, grupo no qual incluiria nomes como Ghérasim Luca (que é autor de um livro fantástico, Théâtre de bouche, constituído por micro-peças de teatro), Oskar Pastior e Ernst Jandl. Todos eles abordam a problemática da palavra escrita e da palavra dita, tendo encontrado formas de superar uma aparente impossibilidade: como continuar a escrever teatro depois de Beckett? Beckett fecha Stirrings Still, o seu último texto publicado em vida, em 1989, com a frase “Oh, acabar tudo”…


Refere-se a um conjunto de peças que escreveu como “pequenos textos de ni théâtre”, “nem teatro”…

É uma expressão que brinca com a minha vontade de misturar géneros, conceitos e suportes: nem é teatro, nem é… São três textos curtos, que escrevi em finais dos anos 1990 e a que dei o nome de Actueur, um “mot-valise” formado pela contracção das palavras “acteur” e “tueur”. Estes textos fecham um ciclo na minha escrita para teatro, onde a palavra era essencialmente uma construção literária. Depois de Actueur, a acção teatral começa a ser geradora de texto literário, é um novo ciclo que começa com radiOthello e prossegue com Manuel Sur Scène (estreado em Berlim, 2005) e Exercices de Frustration (estreado em Zurique, 2006), até chegarmos a Conferência de Imprensa.


A partir de radiOthello o seu teatro surge já não tão marcado pela abstracção das “palavras sem actos”, mas por um mais performativo “acto com palavras”?

Certamente, e nesse sentido Conferência de Imprensa marca uma diferença, já que indicia uma evolução no sentido de uma cada vez maior depuração. Apesar de ainda existirem alguns jogos de palavras – como no final, quando se repetem enunciados elidindo ou trocando as vogais, que são sobretudo jogos sobre o som e o sentido, ou melhor, sobre as deslocações de sentido entre ambos –, a sua construção estilística é muito mais depurada.


Sei que tem algumas resistências em falar da encenação deste texto, isto porque no momento em que falamos ainda nem sequer começaram os ensaios…

Apesar de já ter alguma experiência no terreno, não me sinto um encenador, pelo menos no sentido clássico, não tenho formação específica. Enceno Conferência de Imprensa porque o William Nadylam queria muito que fosse eu a escrever e a encenar o texto, o que é um privilégio e uma responsabilidade acrescida.


A didascália inicial aponta algumas pistas: “Tudo deve funcionar narrativamente como num filme: com fades, elipses, fondus a negro, evidenciados através de alterações de iluminação, interpretação e som”…

Pedi ao João Louro que desenvolvesse ideias visuais para este espectáculo. O seu trabalho sobre a saturação da imagem é conhecido e em Conferência de Imprensa estamos precisamente a falar de uma sociedade saturada de palavras e de imagens. Estamos sempre na iminência de nos despenharmos num precipício, estamos sempre a um passo do abismo, mas acabamos por nunca cair. Como se tudo isto fosse um imenso castelo de cartas com grandes ventiladores à volta e, contra toda a lógica, ele não se desmorona. É assustador observar como esta estrutura sobrevive ao caos.


Nada acidental esta sua colaboração com o artista plástico João Louro, já que ambos parecem desconfiar das palavras e das imagens, ou seja, são sensíveis ao ruído permanente que vai desgastando, banalizando o seu conteúdo…

Desconfiamos, mas talvez não da mesma maneira, ou antes, nem sempre do mesmo ângulo. Já trabalhámos juntos várias vezes e a partir do momento em que o conceito central de Conferência de Imprensa ficou esclarecido na minha cabeça, era uma evidência que tinha de ser o João a conceber o espaço cénico. E a solução que ele encontrou, a de cruzar uma sala de conferências de imprensa americanizada com um muito mediterrânico estendal de roupa, foi para mim uma muito agradável surpresa.


Há uma evidente circularidade na construção do texto (e o círculo também é uma imagem que nos remete para o centro, para o poder): começa e acaba com um epílogo, sendo que o primeiro, a entrevista ao actor de cinema, é difundido em diferido através de ecrãs de televisão, transferindo-se depois para o palco, onde o discurso, em directo, vai assumindo uma dimensão mais politizada. Esta circularidade vai ter uma correspondência cénica?

Não tenho ainda uma ideia precisa sobre aquilo que vamos ver, mas sim, existe a intenção de buscar essa circularidade, embora não esteja certo se o círculo realmente se fecha no final... Somos inicialmente confrontados com algo que reconhecemos como fenómeno eminentemente mediático, e essa transferência para o político vai criando zonas de estranheza e de inquietação, isto porque os discursos, apesar de serem aparentemente iguais são, no fundo, tremendamente diferentes. Vou procurar explorar essa ambivalência entre a arte e o entertainment, entre a tagarelice dos políticos e o discurso político propriamente dito. Existem ainda algumas incursões no music hall, canções que introduzem disrupções no discurso do político, é um elemento “óvnico”, não sabemos muito bem de onde vem. Se calhar resulta do facto de os políticos terem transformado a política num show, onde a regra parece ser a de que é preferível perder os princípios e os ideais para ganhar e chegar ao poder.


Vamos ouvir William Nadylam a cantar?

Eu espero até que ele dance! [Risos] Mas isso já é uma coisa que vamos ter de negociar…


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