Festival de Almada


Encontro de Estética e teoria cultural | Político.Criação.Valor


Sábado 18 de Julho - à tarde. horário à confirmar.


Teatro Municipal de Almada, Sala Experimental 2º Painel


Intervenção de Alvaro García de Zúñiga


Política – Valor – Criação.


Pode parecer uma brincadeira à Heidegger, mas a sociedade em que vivemos leva, antes do mais, a colocar o problema do valor do valor.


Com efeito, o desenvolvimento desenfreado daquilo a que, por mais voltas e outras palavras que inventemos, é o capitalismo – e que aparentemente é hoje a única face da nossa civilização ocidental – transformou aquilo que ainda não faz muito era visto como um meio, num fim em si mesmo. Daí o facto de colocar em primeiro lugar a questão do valor do valor. Pois rapidamente surge claramente que a cultura é seguramente o melhor instrumento de que dispomos para reflectir, para implicar o cidadão e trazer para o debate público a discussão sobre as derivas e as diversas subversões ocasionadas pelo facto de os meios sociais (o dinheiro, o poder, a informação) terem deixado de ser isso mesmo, meios, para se tornarem fins em si mesmos. (Que prazer utilizar a palavra subversão fora do contexto, para mim tradicional dos diversos regimes militares sul-americanos que não hesitavam em utilizar o assassínio em massa para defender os “valores” da sociedade, que eles definiam como democrática e cristã, sendo subversivo todo aquele que se atrevia a defender outros valores).


E dentro da cultura, o teatro – quer seja o último reduto, quer seja primeiro – é sem dúvida um dos instrumentos, uma das artes e medecinas, que melhor se presta ao exercício da reflexão, da posta em causa e porque não da cura da deriva estúpida e estupidizante que resulta da subalternização frente a outros “valores” daquilo que realmente é o bem comum, e que por isso, tem mais valor social, já que nos toca a todos : o direito à saude, à educação, ao saber – ou seja – à cultura… Por isso talvez o teatro seja particularmente tão mal amado do poder, e daqueles que não querem que nada seja modificado nem « sofra alterações », nem venha sugerir melhores equilíbrios, mais justos e mais inteligentes.


A cultura, que na boca dos dictadores era subversiva, é hoje subsidio-dependente, não daqueles que dependem do tacho e do voto daqueles que ainda votam (e já não são/somos tantos assim os que o fazem, não muito mais do que aqueles que vão/vamos ao teatro, ocupada que está à maioria silenciosa a ver passar bolas e sonhar com as compras) : Panem et circences : o poder « perdoa » impostos ao Benfica, mas pede-me a mim para pagá-los por adiantado.


Sem as artes plásticas – não todos aqueles que a fazem, mas uma parte considerável e sobre tudo muito mediatizada e sobrevalorizada por uma sociedade pouco inclinada à reflexão e a encorajar o pensamento próprio, rendida aos Rendeiros deste mundo, ao glamour e à promiscuidade do dinheiro e da especulação – o teatro fica empobrecido, mais só naquela vertente de ser também um exercício crítico, um espelho no qual podemos ver, estudar e por isso mesmo melhorar os nossos defeitos individuais e colectivos.


Talvez por ter intuído isso o João Louro – um dos artistas mais comprometidos e incómodos da actualidade, ao ponto de ter a saturação da imagem como leit-motiv da maior parte da sua obra – pensou que era tempo de criar uma revista na qual todas estas problemáticas sejam o epicentro. Nada novo, claro, até velho como os jornais, e talvez no in verso tão panfletário e propagandístico como eles ; e muito parecido aliás com o que fizeram no começo do século passado dadaístas e outros, agitando, tentando despertar os cidadãos para os perigos da voragem social daquele tempo, que rapidamente conduziria ao paroxismo com a grande guerra, a depressão, a segunda guerra, a era atómica, a manipulação massiva da informação… É que a situação chegou à um ponto tal, que exige de nós ir além do facto de sermos autores e criadores no sentido individual – o que evidentemente se mantém como o centro de gravidade de todo artista – e tentar pôr em marcha um instrumento – muitos instrumentos – capazes de gerar reflexão e propostas para que não aconteçam no nosso século – novidades tecnológicas à l’appui – catástrofes semelhantes ou aindo piores das do anterior. É que, não há que esquecer, o homem, animal que é, aprende pouco do seu passado. Muito pouco.


Alvaro García de Zúñiga



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