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A propósito de OtihOrih

A Música do Caos por Teresa Bartolomei


A pergunta com que nos vemos confrontados ao fazermos a experiência estética da singularidade inovadora e pertubadora da peça radiofónica OtihOrih, é se esta obra não constitui o primeiro texto ‘fractal’ da literatura post-europeia (assumindo que OtihOrih parte precisamente do postulado que a ideia de Europa no singular duma unidade é paradoxal à realidade histórica, mesmo que nela inscrita, e a sua potencialidade é por princípio posterior à sua actualidade). Muito além da não-linearidade fragmentada e magmática do “stream of consciousness”, a construção textual de OtihOrih apresenta-se como uma recognição da estrutura formal do caos, em que a dinámica estocástica dos processos aleatórios é lida na sua necessidade ‘estrutural’ profunda. O caos é um sistema (aliás de formas assombrosas), como a matemática tem vindo a demonstrar e como a literatura pode vir a apresentar, só tendo a coragem de se despedir de alguns dos seus automatismos culturais mais enraizados, como o da auto-suficiência auto-referencial e da não contaminação cognitiva se não ser a nível dos conteúdos. A aposta de OtihOrih é precisamente a de implementar as potencialidades cognitivas e expressivas da literatura não a partir daquilo que é dito (numa linha tradicional de escrita), nem a partir de como é dito (numa linha de formalismo avantgardístico), mas pelos meios pelos quais é dito (numa ampliação ‘rizomática’ do código linguístico). É precisamente por isso que no caso de uma obra como OtihOrih não se pode, em rigor, falar de escrita, porque o momento grafemático é nitidamente só uma componente pontual num conglomerado semiótico extremamente complexo, em que o código linguístico interage orquestralmente com uma pluralidade de códigos musicais e mediáticos diferentes – rádio, televisão, Internet. A pluralidade sinérgica das mensagens culturais pelas quais é filtrado e constituído o nosso relacionamento com a realidade é um facto adquirido no nosso dia a dia (se nós reflectirmos de que é feito o nosso conhecimento dos eventos publicos, como, por exemplo, precisamente o célebre discurso de Hirohito ‘apresentado’ em OtihOrih, veremos que a nossa representação é um precipitado intrinsecamente aleatório – extremamente particularizado individualmente - em que se sedimentam e se processam mutuamente conjuntos variáveis e indeterminados de informações directas e indirectas tiradas da televisão, da rádio, do cinema, dos jornais, da Internet, dos livros; de relatos históricos; de experiências estéticas tidas com obras de arte – de Hokusai a Mishima-; de experiências biográficas ocasionais ou finalizadas como viagens, estudos, eventuais relacionamentos com japoneses, hábitos alimentares como a frequência de, ou a aversão aos, restaurantes de sushi, etc.). Mas, se enchem bibliotecas as tentativas sociológicas de apanhar esta pluralidade numa objectivação analítica (na descrição fenomenológica), faltava, até agora, a nível artístico uma tentativa coerente de articular uma reflexão estética (como apresentação das condições de representação cognitiva) a este respeito. É com este desafio que se mede o OtihOrih, na sua re-construção desconstructiva das condições da nossa construção da realidade, a começar daquelas linguísticas, em que a polifonia das línguas diferentes que dizem o mesmo de maneira diferente (ou será dizer o diferente da mesma maneira?) nos tira de baixo dos pés o confortável tapete do pensamento único que aninha na consciência de cada um de nós em flagrante contraste com o crioulismo do nosso subconsciente cultural (porque língua é por princípio línguas: contra todo monismo racionalista e historicista, nenhum lógico e nenhum filólogo imperialista nunca conseguiu subjugar o pluralismo matricial da palavra: foram um estrondoso fracasso todas as tentativas de encontrar a língua-mãe de todas as línguas - da língua adâmica passando pelo sanscrito).


Este texto fractal, que decifra por nós a música do caos (aquela que não sabemos ouvir, não sabendo reconhecê-la no som da realidade, que muitas vezes implode em mero ruído), no seu Abschied estético de uma simplificação semântica da verdade não se entrega de maneira alguma a uma fuga formal (e esteticizante) da realidade, mas confronta-se com perguntas fulcrais do nosso existir e da sociedade.


A maior (e mais assustadora) destas perguntas é se não será a guerra que decide da teologia, sendo a política a face apresentável (burguesa) da primeira (onde teremos que operar uma das muitas inversões às quais este texto nos abre o caminho, invertendo um dos lemas centrais da “belilogia” : “A política não é senão a continuação da guerra por outros meios". A política é por isso não só, em si, um acto de guerra, mas um verdadeiro instrumento da guerra, uma prossecução do procedimento bélico, a sua continuação com outros meios. "Lrak nov Ztiwesualc", aliás Klaus von Clausewitz dixit). A guerra (seja ou não 'desfardada' com as vestes ‘à paisana’ da política) decide quem são os nossos deuses, porque são os vencedores os donos que mobilam o Panteão e deitam fora as divindades fora de uso, fora de prazo. Hirohito fica desclassado a ser humano por um general yankee e isso não é nada novo: deus é o da vitória, aprendemos no Antigo Testamento e o interregno evangélico (beatos os vencidos) dura pouco- já Constantino combate no signo da cruz. O que é divino é o poder (não é o divino que instaura o poder: é por té-lo afirmado que Jesus foi mandado crucificar pela igreja do seu tempo) e quem perde o poder perde a divindade, quem o ganha ganha a divindade. É só uma questão de vontade, como ensinava o Schopenhauer: o ser é uma consequência. E nessa revelação niilista da história, a epifania que encarna perfeitamente a desmistificação da teologia da divindade na sua natureza de vontade de poder, é a ‘kénosis’ do imperador no seu alter ego picaresco e imundo em que a soberania exibe toda a sua essência imoral e o arcaísmo pulsional que a gera. O OtihOrih mulherengo e mafioso, sanguínio e carnal, banal e ‘abjecto’ (levante a mão quem não reconhece o Primeiro Ministro italiano dos nossos pequenos dias) é o negativo fotográfico da sublimidade divina como instauração bélico-política do poder. A violência é o sangue que alimenta as duas faces da desmistificação. A vontade mascara-se sempre e não há verdade se não a de reconhecer que o que vemos é máscara (e atrás apenas o seu avesso).




OtihOrih, Peça trilingue. Escrita e realização de Alvaro García de Zúñiga, para voz(es) & mais alguns sons. ± 54’


intérpretes: Leopold von Verschuer, Rocco Giordano & Ken Hayashi


Tradução para alemão: Leopold von Verschuer

Tradução para italiano: Teresa Bartolomei

Tradução para japonês: Dominique Taste & Fushida Manami


Edição final e misturas: Elsa Ferreira




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