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Entrevista de Maria João Seixas



CONVERSA COM VISTA PARA…

ALVARO GARCIA DE ZÚÑIGA

in revista Pública do Jornal Público de 6 de Janeiro de 2002


Se na Conversa anterior espreitámos o “capitalismo de aventura”, é agora a vez de nos deixarmos seduzir por outras aventuras, as do mundo das artes, da criação e do pensamento. Uma curiosidade sem limites anima este viageiro intranquilo que, sendo uruguaio por nascimento, é agora também português, por razões de enamoramento de uma lusitana, de sua graça Teresa, com quem casou. Foi em Outubro do ano passado que ganhou o estatuto de dupla nacionalidade e poude assim votar pela primeira vez a favor de Lisboa, cidade onde vive e que muito ama, talvez por lhe encontrar similitudes com Montevidéu. Fala um português trapalhão e cantante, embrulhado em muitos gestos, por receio que não o entendamos. Pedi-lhe já que não perca o jeito de nos brindar com “sinto nostalgias suas”, em lugar das nossas “saudades”, que não quer fixar, nem consegue converter. Parece, muitas vezes, desconversar, numa espécie de culto do absurdo, com piruetas lexicais e de aparente “non-sense”. Mas se o convocamos a melhor se explicar e a dar-nos pistas das suas referências e associações, percebemos logo que tudo o que diz tem fundamento e é sempre com doçura, acompanhada de um irrequieto sentido do “divertimento”, que transmite e partilha o que sabe. Pensa a um ritmo com mais rotações do que aquelas que nos habituámos a digerir e às vezes tropeça em si-próprio, o que é muito divertido, embora nos obrigue a uma atenção reforçada, para não ficarmos pelo caminho. Gosta de gostar do que gosta e do que vai descobrindo para gostar, exprimindo-o fisicamente como os miúdos – “Eu gosto, queres tu experimentar?” Falta-me ouvi-lo em curva sobre o seu violino, mas o que dele já vi, em teatro e em cinema, devolveu-me a sua imagem ao espelho envolta numa aura de bizarria, que só um singular talento pode sustentar. Ao ver o excelente documentário que acaba de realizar sobre a Sala das Batalhas do Palácio Fronteira, percebi que a consistência dos seus saberes e da sua sensibilidade, sem trair o fraseado lúdico que tão bem cultiva, são dominantes do seu retrato. Terno, bonito, raro.


MJS – Alvaro, diz-me quem és.


AGZ – Devo ser algo assim como uma seis bilionésima parte dos habitantes do planeta. Grosso modo. Contando só os humanos, claro, e considerando que todos os humanos são humanos. Globalmente é como me sinto, uma individualidade num mar de individualidades.


MJS – Teres nascido num país sul-americano não é um factor relevante para a tua relação com esse grande mar de individualidades?


AGZ – Sem dúvida. Uma parte da leitura que fazemos das coisas tem seguramente a ver com as nossas origens. Com o correr dos anos que já vivi na Europa, fui-me dando conta que muitas coisas vistas pelos europeus não são vistas por nós do mesmo modo. Porque nós vemos do outro lado do mundo. Há um desenho de Joaquim Torres Garcia, grande pintor uruguaio, que aliás foi o cartaz da exposição do Beaubourg sobre a América do Sul, que pinta o Pólo Sul acima do continente, numa visão inversa do atlas. Nós vimos de baixo. Isso altera muita coisa.


MJS – Até quando é que viveste em Montevidéu?


AGZ – Vamos entrar já na história complicada? Bom… Tive uma infância não exactamente caótica, mas um bocadinho movimentada. Quando os meus pais se divorciaram, a minha mãe foi viver para a Argentina e eu fui com ela. Com o meu pai, tinha eu oito anos, fiz a “grande” viagem à Europa. Eram viagens que se faziam uma vez na vida e que duravam meses. Faziam parte da formação de uma pessoa. Vivi, entretanto, quase um ano no Brasil. Tenho ideia que até 1972, ano que passei todo no Uruguai, nunca tinha estado um ano inteiro no mesmo país. Foi uma infância trepidante!


MJS – Qual era o lugar para a escola?


AGZ – A escola? Catastrófica e, essa sim, caótica. Havia o problema da não existência de equivalências, a disciplina de História então era fatal, porque a História dos países não era a mesma e isso, entre outras coisas, obrigou-me a repetir anos. Uma trapalhada.


MJS – Quando é que começas a sentir em ti o desejo de estudar música a sério?


AGZ – O gosto pela música foi-se instalando pouco a pouco. Tive sempre curiosidades várias e a música foi ganhando o seu lugar. A minha mãe tocava piano e aprendi a ler e a solfejar com ela. O que ajudou. Era e sou, fundamentalmente, muito curioso. A leitura, por exemplo, quando comecei a gostar de ler, e não foi tão cedo assim, foi só depois dos doze/treze anos, tornou-se compulsiva. Passei a ler tudo o que me caía nas mãos, até o que estava escrito nos bilhetes de metro. Um poeta argentino, já não me lembro se foi Oliverio Girondo ou Nicolás Olivari, contou que a obsessão pela leitura era tamanha que chegava a ler os tickets dos eléctricos. Fui “apanhado” para a leitura por um livro de guerra, que devia ser péssimo, esqueci-me do título, do autor, de tudo. Mas sei que esse foi o primeiro livro que me agarrou. A seguir, nunca mais parei, do Quijote de Cervantes a peças de teatro e a outras obras, sem relação aparente entre si. Tudo me interessava.


MJS – E o violino?


AGZ – O meu “caso” com o violino aconteceu mais tarde. Comecei por aprender a tocar guitarra e, depois, a interessar-me por composição. Só comecei a estudar composição a sério quando comecei a aprender violino. Foi em Buenos Aires, com Roque de Pedro, um grande compositor argentino. Foi ele também que me fez conhecer o teatro musical. Era alguém que sabia muitíssimo sobre os instrumentos e os seus registos. Aprendi com ele instrumentologia, as dificuldades da orquestração, a importância da harmonia e do contraponto…


MJS – Foi Roque de Pedro quem te encaminhou para o violino?


AGZ – Está tudo ligado e as coisas foram acontecendo em simultâneo. De alguma maneira a escolha do violino foi interesseira. Talvez tenha a ver com a América do Sul. Sabia que não se podia viver da composição, que era o que me interessava e era a ela que me queria dedicar. Tinha que encontrar uma solução remunerável e o violino era o que mais havia numa orquestra. Foi por aí que o violino começou, depois passou a ser outra coisa. O violino conquistou-me, pouco a pouco fui abrandando a escrita musical e, quando descobri o teatro musical, passei a interessar-me muito mais pela via do gesto musical do que pela música em si. Foi a época da descoberta de Kagel e de outros. Foi também a época em que me aproximei do teatro, da escrita para teatro.


MJS – Fala-me da especificidade do teatro musical.


AGZ – O teatro musical é uma variante que nasce do gesto musical, do gesto que produz o som. Digamos que, a partir daí, toda a tensão que se pode gerar, com ou sem som, mas que vem do lado musical, é o que se considera mais ou menos teatro musical. A célebre peça 4’33’’ de John Cage, com quatro minutos e trinta e três segundos, está, para mim, associada ao teatro musical, como a globalidade das peças de Kagel e muitas de Roque de Pedro.


MJS – Chegaste a colaborar em concertos/espectáculos de teatro musical nesse período em que voltaste para a Argentina?


AGZ – Claro, em vários. Com Roque de Pedro, participei numa experiência muito bonita, com uma peça de coro escrita para professoras de escola primária. Foi escrita para pessoas que não sabiam cantar, nem tinham qualquer noção de solfejo. A partitura tinha duas ou três indicações prévias e o resto qualquer pessoa podia interpretar a seu jeito. O resultado foi fantástico.


MJS – Saltemos agora de Buenos Aires para Santiago do Chile. Foste à procura de quê?


AGZ – Nos cursos que fiz em Buenos Aires conheci um violinista chileno, Sergio Prieto, um dos melhores “concertinos” que conheço, juntamente com Joe Silverstein, Iona Brown, Glenn Dikterow (julgo que, neste momento, Prieto é solista numa das orquestras de Barcelona) e deu-me uma imensa vontade de ir aprender com ele, junto dele. Fui e posso dizer que consegui, mais ou menos.


MJS – Mais ou menos?


AGZ – Sergio Prieto pôs-me a aprender violino desde a estaca zero. Estaca que eu julgava ter ultrapassado há já muito. Mas não, o método do professor era particular. Aceitou-me como aluno, embora achasse que tudo o que eu fazia era mau, e explicou-me que me ia tratar como se fosse um principiante, ia meter-me numa sala vazia, com um espelho e um gravador e eu teria que passar horas a tocar cordas para o ar, “à vide”. Foi o que fiz, durante quase um ano e meio. Fui seu assistente na Universidade, mas deixar-me tocar, nem pensar! Mexeu tanto comigo, sacudiu-me de tal forma que eu também fiquei sem condições para tocar o que quer que fosse. Tinha vinte anos, já tinha trabalhado como violinista numa orquestra em Buenos Aires e esta aprendizagem com Sergio Prieto foi muito dura, não posso dizer que tenha sido um passo atrás, mas foi ao lado. E cortou em mim uma certa ideia de continuidade no trabalho. Regressei à Argentina e, pouco tempo depois, larguei para a Europa.


MJS – Para algum país em particular? Com que objectivos?


AGZ – Quando estudei em Buenos Aires tive aulas com Alberto Lysy, violinista de grande craveira, argentino de origem russa, aluno de Menuhin e director da Academia Menuhin em Gstaad. Quando lhe disse que queria ir estudar com Prieto para o Chile ele tentou dissuadir-me, garantindo-me que conseguiria mais facilmente uma bolsa para a Suíça e nenhuma para o Chile (aqui tinha razão, era verdade!). Quando voltei do Chile para a Argentina, as coisas já não me motivaram da mesma maneira e resolvi então tentar a Europa. Vendi tudo o que tinha e, com a minha primeira mulher que estava grávida, partimos. A primeira ideia era ir para Inglaterra. Londres, Menuhin, essa era a ideia. A viagem começou por Moscovo e, de visita em visita, lá fui percorrendo os centros musicais europeus que mais me interessavam: Moscovo, Budapeste, Praga, Salzburgo, Viena, Paris, até chegar a Londres.


MJS – Tinhas meios e contactos para que a viagem fosse um êxito?


AGZ – Não, foi uma viagem não preparada, feita com grande ingenuidade. Eu pensava que as coisas iam ser fáceis e foi tudo tremendamente difícil.


MJS – Como é que fazias? Chegavas aos sítios, dirigias-te aos Conservatórios, dizias quem eras, ao que ias e depois?


AGZ – Depois deixavam-me entrar, assistir a aulas, ver tudo o que quisesse. Menos em Viena, onde não foi possível ver nada pelo lado de dentro, como em Salzburg, onde procurei Sandor Vegh, que era amigo de Alberto Lysy e que foi antipatiquíssimo comigo. Lá fui continuando a dar mais umas tantas voltas até que cheguei a Londres, onde tive a sorte de conhecer Norbert Branin, do Quarteto Amadeus, e de poder ter aulas de violino com ele. Queria muito aprender o modo como ele fazia música de câmara. O Quarteto Amadeus foi um dos Quartetos míticos do século XX. Tocaram juntos durante quarenta anos. Só pararam quando o altista morreu. Três deles eram austríacos e conheceram-se num campo de concentração na Ilha de Man. Foi aí que decidiram formar o Quarteto.


MJS – Um campo na Ilha de Man?


AGZ – Os ingleses também concentraram os estrangeiros que vinham de países do Eixo. Como os americanos concentraram japoneses, depois de Pearl Harbor. Por acaso, dois dos elementos do Quarteto Amadeus eram judeus mas, à cautela, foram dentro! Norbert Branin viera da Holanda, onde tinha estudado com o grande Carl Flesch, de que se perdeu o rasto durante a guerra. Desapareceu. As escalas de violino que os alunos devem aprender são sempre da autoria de Flesch. Um dia, em Londres, tive uma sorte rara: no mesmo dia, à mesma hora havia na sala Barbican o Concerto de Alban Berg, por Zuckermann e Pierre Boulez e, em South Bank, Perlman e Haitink tocavam o Concerto de Elgar. Para um apaixonado de violino como eu, aquela dupla e simultânea oferta era um dilema. Tive uma espécie de reflexo de electrão e decidi ir de manhã ao ensaio de um, e à noite ao outro concerto. No fim do ensaio de Alban Berg fui falar com Pierre Boulez, expliquei-lhe quem era, o que queria fazer e que me interessava muito pelo trabalho do Ensemble Intercontemporain. Disse-me que no ano seguinte (poucos meses depois do nascimento do meu filho!) abriria um concurso para violino no Ensemble. Foi assim que decidi ir para Paris.


MJS – E conseguiste o posto no Ensemble?


AGZ – Nem concorri. Comecei a tocar no metro. Vivíamos num quarto “de bonne”, já não tínhamos dinheiro e fui pedir ajuda a um amigo meu, advogado argentino, também recém-chegado a Paris. Perguntou-me o que é que eu sabia fazer, se podia cantar e tocar guitarra. E encaminhou-me para o metro. Naquela altura, anos oitenta, as pessoas davam mesmo dinheiro a quem tocasse e cantasse nas carruagens. Dava para viver. A nota maior que recebi foi de cinquenta francos, mas conheci uma pessoa que um dia recebeu um cheque de mil e quinhentos francos e outro amigo meu só parava de trabalhar, tocando jazz e tangos, quando tivesse feito mil e tal francos! Era essa a sua meta, todos os dias. Acabou a comprar um bar no Mónaco! Depois da guitarra passei ao violino, toquei Bach, Bartók, Ysaÿe… e as pessoas gostavam! De manhã fazia isso e, à tarde, estudava e praticava. Com alguma dificuldade, no tal quarto “de bonne”, com uma criança pequenina.


MJS – Entretanto sabes que estás doente, com um cancro no pulmão direito, és operado duas vezes, divorcias-te pelo meio. Tudo isso deve ter alterado, e muito!, os teus projectos de vida.


AGZ – Em cheio. Foi em 87. Percebi que alguma coisa estava errada quando comecei a sentir a mão esquerda sempre fria, por mais que tocasse violino a mão nunca aquecia. Os meus amigos achavam que era mania minha, que o que eu não queria era atirar-me a sério para a vida profissional, ainda sob a influência inibitória de Sergio Prieto. Decidi-me a fazer vários exames que, lamentavelmente, foram mal interpretados por um estudante de Medicina e ninguém viu que havia um pequeno tumor debaixo da clavícula. Tumor de células malignas que cresceu até nove centímetros e que, por tocar na coluna vertebral, fazia que a mão e o braço estivessem sempre frios. Depois começaram as dores a sério, porque as primeiras eu achava que era por carregar o Fernán aos ombros e talvez por isso tivesse comprimido uma vértebra. Aprendi a dormir sobre o tumor para aliviar a coluna e voltei às consultas. Foi então que encontrei o meu cancerólogo que, tendo recuperado os primeiros exames, percebeu logo de que é que se tratava. Aconselharam-me a começar por fazer quimio-terapia, mas pedi para ser primeiro operado e só depois fazer rádio e quimio. Fui fantasticamente tratado e tive um acompanhamento excelente no Hospital Avicenne, em Bobigny. E ainda nem sequer tinha os meus papéis legalizados em França! Para espanto dos médicos não havia metástases, embora dez meses depois da operação tivesse surgido uma mancha, resultado dos tratamentos de rádio, que me obrigou a nova cirurgia. Essa é que correu menos bem. O meu braço direito nunca mais ficou firme, sempre muito trémulo, talvez devesse ter-me aplicado mais nos exercícios de recuperação, como o Menuhin fez exemplarmente com o yoga. E assim comecei, devagarinho, a pôr o violino de parte. A última vez que toquei, última e definitiva, já estava a viver em Portugal, foi em 96, no Teatro Rond-Point des Champs Elysées de Paris, numa peça de teatro, muito curiosa, de um autor húngaro, Peter Nadas. A peça tinha partes musicais de difícil execução, de um compositor aluno de Tackacs, escritas numa partitura que saía directamente de algumas palavras do texto cénico.


MJS – Operado e divorciado, em má forma, como é que sobreviveste em Paris?


AGZ – Como é que sobrevivi? Nos primeiros tempos, com o apoio de amigos e da assistência social. A vida, entretanto, foi dando as suas voltas. Um amigo meu, actor, comprou um teatro e fez lá uma escola, onde comecei a dar aulas de teatro musical. Propus-lhe fazer um ciclo de música contemporânea. Paris, onde sempre houve uma espantosa oferta musical, tinha nesse tempo grandes deficiências a nível da música contemporânea, com programas muito pouco ecléticos. Boulez tinha conseguido impor, por assim dizer, uma espécie de arte oficial na música contemporânea, onde certo tipo de compositores e de correntes musicais eram os privilegiados e só eles recebiam as encomendas do Estado e eram alvo das programações mais significativas. Os pós-serialistas, os da música espectral, da escola de Darmstadt, eram eles os que conseguiam as encomendas.


MJS – Consegues fazer-me entender o que é a música espectral?


AGZ – Vou tentar. Os compositores de música espectral trabalham com o espectro sonoro, fazem uma música de especulação de harmónicos que estão muito longínquos da tónica de uma nota. Temos, por exemplo, um dó baixo, grave. Esse dó é composto por outro dó, uma oitava mais aguda, pelo sol, pelo dó mais acima, pelo mi, sol, ainda a seguir pelo dó, mi, sol, si bemol, depois dó, ré mi, fá sostenido, sol, etc… com notas sempre cada vez um bocadinho mais “desafinadas”, por assim dizer, à Tom Jobim. Quanto mais nos afastamos da nota original, essas “desafinações” começam a transformar-se em quartos de tom, terços de tom, oitavos de tom, com ligeiras diferenças de frequências e é com esse material harmónico que os espectralistas compõem. Por isso é que a música contemporânea pode soar pouco afinada. Porque, de facto, não está afinada nem no sentido pitagórico, nem no sentido temperado.


MJS – Podes fazer o mesmo esforço para me iniciares no universo do serialismo?


AGZ – Aí recorro a Webern. O desenvolvimento da noção de série foi explicado por Anton Webern através de uma fórmula em latim que diz, em português, qualquer coisa como isto: O senhor /Arepo/ Tem/ Obras/ Inconclusas. Não quer dizer nada, pois não? Agora olhe bem para o gráfico da fórmula em latim e veja como fica claro o princípio do serialismo, como a frase pode ser lida em todas as direcções, com a palavra TENET a desenhar centralmente uma espécie de matriz, reversível, em cruz:

                        SATOR
                        AREPO
                        TENET
                        OPERA
                        ROTAS

MJS – Divergimos e bem. Mas quero saber se chegaste a organizar o tal ciclo de música contemporânea no teatro do teu amigo.


AGZ – Não. Percebi que me faltavam as competências necessárias para ser um bom operador cultural e a sala de teatro, entretanto, também foi vendida. Foi então que concorri a uma bolsa para um “master” de um ano em “management” cultural. Foi aí que conheci a Teresa. Viajámos por Itália, pela Roménia e tivémos durante algum tempo aulas em Dijon e em Chaux, no Jura, num edifício espantoso - a Saline Royale, única construção do utópico projecto para uma cidade nova do incrível Claude-Nicolas Ledoux. É um espaço extraordinário! A seguir, porque era preciso fazer um estágio e eu queria saber mais de técnicas e tecnologias, fui para o CNRS (Centre National de Recherche Scientifique). Onde aprendi muito, sobretudo no que diz respeito à divulgação científica no terreno do audio-visual. E onde conheci pessoas absolutamente incríveis, naquele imenso barco onde trabalham vinte e oito mil cientistas. Fiquei a conhecer como se faz investigação fundamental, não aplicada, e pareceu-me particular a relação que a Europa tem com a investigação aplicada. Conheci um químico que trabalhava em macro-moléculas e estava a fazer écrans dobráveis, uma coisa espantosa. Parece que ainda não está no mercado e os únicos que tinham tecnologia capaz de produzir industrialmente aqueles écrans eram os japoneses. A Europa produz imensa investigação fundamental mas depois não tem capacidade de lhe dar aplicação. É a Europa que provavelmente mais suporta esta investigação “inútil”, como é também a sociedade civil europeia que continua a mais suportar a criação “inútil”, que é a arte. É muito curioso.


MJS – Com a Teresa a teu lado, acabas o estágio no CNRS e, pouco depois, vens com ela para Portugal. Já conhecias o país?


AGZ – Na tal grande viagem à Europa dos meus oito anos, regressámos ao Uruguai por Lisboa. E eu lembrava-me de algumas coisas, do Parque Eduardo VII, do Marquês de Pombal, dos autocarros verdes de dois andares e dos polícias sinaleiros com luvas brancas. Curiosamente não me lembrava da Ponte (na altura Salazar), nem do elevador de Santa Justa, que é uma pérola. Guardei sempre na memória a semelhança das fachadas portuguesas com alguns prédios de Montevidéu e como isso me fez sentir em casa quando passámos por Lisboa. Há um conjunto de casas em Montevidéu, projectadas nos anos trinta por uns famosos arquitectos uruguaios, que não se parecem com nada do que se vê no país, na Argentina, por ali. Agora sei que são como algumas casas portuguesas, das que já vai havendo poucas em Lisboa, na Av. da República, na 5 de Outubro. O Uruguai foi invadido por Portugal, era uma província cisplatina e eu acho que continua a ter mais a ver com Portugal do que com a Espanha.


MJS – E mais tarde, com as leituras e outras curiosidades que te animavam, conheceste alguma coisa mais da realidade portuguesa?


AGZ – Até vir para cá, quase só conhecia os ícones. Do futebol (Eusébio e o Benfica, que vi perder num jogo em Montevidéu, contra o Peñarol) à música (Amália, incrível como me passou ao lado Carlos Paredes, foi a Teresa que mo deu a ouvir e fiquei encantado!), da poesia (Camões, Pessoa) à História antiga (Vasco da Gama) e à moderna (o 25 de Abril, Álvaro Cunhal, Otelo, Eanes, Mário Soares).


MJS – Contaste-me um dia uma anedota chilena, do período pós-Allende, que te parecia reveladora não só do Chile da altura, como de grande parte da América do Sul. Importas-te de repetir?


AGZ – A do pé? Bom, um senhor ia de pé num autocarro cheio de gente, numa hora de ponta. A um dado momento pergunta a outro passageiro que estava ao lado dele – O senhor é militar? – Não, não sou militar. – É polícia? – Não, não sou polícia. – Mas tem por acaso alguém na família que seja militar ou polícia? – Também não. – Ah, então não se importa de levantar o seu pé de cima do meu!!!


MJS – Ufff, que calafrio! Achas que esses anos já eram?


AGZ – Não, esses anos não passam. Embora neste momento já não sei bem o que é que acho, porque estou, em todo o sentido, muito longe da América do Sul. Acho que se ganhassem as pessoas que ameaçam o poder instituído, as pessoas que pensam “feio”, como dizia um humorista uruguaio, é sempre possível que aconteça um golpe de estado, apoiado ou comandado pelos militares. O poder militar é um poder latente em todo o continente. Com o 11 de Setembro (por acaso o de 1973, no Chile, foi o dia do golpe de estado de Pinochet!) ouvi frases da boca de Bush que me lembraram o pensamento dos militares sul-americanos. “Atentar contra o nosso modo de vida”. Nunca percebi muito bem qual era o nosso modo de vida, nem que não fosse permitido alterá-lo. “Quem não está a nosso favor, está contra nós.” Então aqueles de nós que não estamos nem a favor nem contra ninguém corremos o risco de pensar “feio”. Com estas frases do grande democrata do norte lembro dos militares sul-americanos. Eles também sabem que há muitos sul-americanos que pensam “feio” e que estão dispostos a correr o risco dessa forma de pensar.


MJS – Agora que também és português, o que é que isso quer dizer dentro de ti?


AGZ - Não sei explicar. Mas como não gosto de “fronteiras”, lembro-me de uma cidadezinha fronteiriça, no norte do Uruguai, que se chama Ribeira (nome do primeiro presidente do país, o tal que mandou exterminar os índios!) e que tem uma avenida, cujo passeio do outro lado já é território brasileiro, já tem outro nome que é Santana do Livramento. As pessoas que vivem de cada lado do passeio falam, naturalmente, portuñol. Como eu.


MJS – Portuñol ou não, o facto é que, no seguimento do tal “master” francês em “management” cultural, lanças-te, em Portugal, na escrita para teatro e para cinema, encenas duas peças e realizas uma curta-metragem e um documentário. Que gosto guardas destas aventuras?


AGZ – O gosto de partir para outras, que já estão na calha. A primeira peça – O Teatro Impossível, foi um desafio delirante apoiado pelo Acarte, com um grande estímulo de Yvette Centeno e que vai iniciar uma digressão em várias cidades da Alemanha no próximo dia 23. A segunda – O Teatro é Puro Cinema (escrevi-a em francês e o título soa ligeiramente diferente – Le Théatre n’est que du Cinéma), foi co-produzida pelo teatro D. Maria II, na altura dirigido por Carlos Avillez. Outro delírio. Surgiu depois o desejo da realização (video/cinema) e foi quando concorremos ao apoio do ICAM às curtas-metragens para fazer – Um dia na Vida, logo seguido do trabalho, mais elaborado e complexo, para o documentário – Batalhas, sobre os magníficos painéis de azulejos da Sala das Batalhas do Palácio Fronteira. Agora, entre outras coisas, acabei o primeiro “draft” de – GAMBITO, uma longa-metragem a ser realizada por Fernando Lopes e preparo-me para fazer uma (in)adaptação sobre – O Cinema é Puro Teatro – e ainda uma - História Universal do Sushi. Sei que este projecto lhe vai agradar muito!


MJS – Estou já a salivar. Estamos a chegar ao fim, mas gostava ainda de saber qual é a família teatral que te inspira?


AGZ – A lógica da minha escrita para teatro é pós-beckettiana. Foi aí que apanhei o comboio (ou o avião?) do teatro. A pergunta a fazer é - onde é que Beckett me passou a bola do teatro? E a resposta será que me deixou numa situação complicada. Ele, como já outros tinham tentado, puxou ao limite aquela história das trinta e seis situações dramáticas. Li – À Espera de Godot, com dezassete anos e fiquei muito perturbado. Happy Days e a peçazinha – Impromptu de Ohio, já do seu período final, foram determinantes para mim, para a minha apreensão do “tempo” teatral. Beckett ensinou-me a procurar um tempo de acção teatral que não pode exceder o tempo real do espaço cénico. Como é que eu faço? Começo, por exemplo, pela eliminação de personagens. As minhas peças não têm personagens, têm actores que estão a representar às vezes papéis, outras vezes não, que sabem perfeitamente o que disseram e o que vão dizer e que vão começar e acabar num determinado momento.


MJS – Dá-me uma palavra de eleição.


AGZ – Palavra.


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